Esse tópico/artigo é longo. No total dá umas 8 páginas no word(tamanho 11), mas separei tudo em caixas 'spoiler' conforme o interesse.
Não abra nenhum. Vá direto ao ponto.
Aí sim a quem interessar é só voltar e abrir os spoilers... por sua própria conta e risco
blah, blah, blah
A idéia que me deram foi de postar um cenário incompleto e sofrendo grandes modificações durante esse processo, como um making of; A idéia me empolgou(acho que até demais), principalmente porque me dá espaço para jorrar minhas próprias dúvidas sem me preocupar e de quebra o feedback que me ajuda imensamente.
Paralelamente, eu tinha prometido escrever colunas para o site(principalmente sobre cenários e desenvolvimento) e de vez em quando sou cobrado por alguém(que não é o Lumine ). Mas sei lá, me sinto desconfortável fora desse ambiente familiar que são os tópicos. Então estou matando dois goblins numa espadada só.
Me lembrei que pode ser uma boa explicar o propósito do cenário, o diferencial, o motivo, antes de entrar nos detalhes.
O Propósito
Eu aprendi isso do jeito mais chato: criava várias ambientações e me perdia nelas, muitas não faziam sucesso com os jogadores, eram redundantes, repetitivas ou sequer viram a luz do dia. Pura estupidez minha, mas eu era moleque. Enfim reparei que precisava cortar, me focar, e juntar idéias de forma mais coesa... para começar perguntando:
'Por quê fazer esse cenário?'
Hoje meus professores repetem isso no meu ouvido a cada semestre, quem dera alguém tivesse me dado esse toque antes. Perdi muito tempo que poderia ter sido produtivo em outras coisas... mas enfim;
Abaixo é um longo texto. O porque acho importante definir propósitos e como... qualquer cenário.
Eu acho que não importa se você é do tipo que encorpa a ambientação conforme a campanha rola ou do tipo mais nerd inspirado que prefere fazer todo um mapa e detalhar a parada, avaliar os motivos e "se realmente vale a pena fazer isso"(cenário) pode poupar trabalho, agilizar o processo e trazer resultados muito melhores, mais interessantes e focados.
Eu particularmente acho uma etapa essencial(hoje em dia penso assim), que todos deveriam fazer antes de começar a rabiscar seus mundos.
Basicamente é: o que você busca com essa ambientação? Qual o resultado desejado, as motivações? Já existe algo que faça exatamente o que quer?
Porque jogariam esse cenário ao invés daquele outro?
Acho que me adiantei, mas a linha de raciocínio é uma só. Indo por partes:
O que você quer?
Claro, deve ser uma ambientação que você tenha prazer em narrar, diversão é um propósito óbvio e vago. Além disso, é o quê? O estilo de jogo, o tema do cenário? Um lugar para jogar suas várias idéias soltas que não encaixam em outro cenário?
Dando exemplos pessoais, eu joguei todo um cenário fora depois que conheci Legend of Five Rings(Rokugam). Não sabia que existia um cenário tão bacana oriental e tinha feito um justamente para rolar histórias com ninjas e samurais e outras orientalidades. Comparando ele acabava com tudo que eu tinha escrito. Se eu tivesse procurado antes teria me poupado muito.
Quanto a ter um espaço para suas várias idéias... dependendo de quais, também não justifica *necessariamente* fazer toda uma ambientação. Esse era meu maior pecado: conforme tinha idéias que empolguei muito em narrar, mas não se encaixavam no 'estilo' ou canon de outros cenários, eu esboçava logo uma ambientação para usá-las.
ADAPTAR. Nada impede de modificar cenários ao seu gosto e necessidades. Todo mestre, suponho, acaba adaptando alguma coisa quando narra um cenário oficial mas costuma ser tímido: uma facção, um plot novo... mas porque não mais? É a sua mesa, é o seu jogo. Nada impede ninguém de narrar sua própria versão de 'Cenário Oficial'(tm). Afunde continentes, brote novos, mude a história; idéias isoladas não justificam toda uma ambientação... não é realmente preciso.
O que você busca? Quais os resultados desejados?
Enfim, saindo do 'você'(o que vc quer), quais os resultados desejados(o que engloba os demais jogadores)?
Novamente, reunir amigos para se divertir contando/interpretando histórias é óbvio por definição(de um rpg). Além disso, há algum objetivo?
O exemplo mais fácil do que chamo de 'resultados desejados' é uma campanha de terror: o resultado planejado, além de uma sessão satisfatória a todos(o óbvio), é assustar ou deixar os jogadores desconfortáveis com um frio na espinha.
Definir claramente quais os resultados ajuda enormemente no desenvolvimento; dá foco. Ajuda a observar o todo com maior clareza e tomar decisões apoiado numa justificativa. E obviamente faz a diferença na decisão entre projetar ou não o cenário: ter ambientações com os mesmos resultados não anula a intenção de fazer um novo. A pergunta se torna: ele alcança esse resultado melhor? Isso entra no próximo ponto:
Porque jogariam esse ao invés de outro?
A mais essencial. Não é questão de 'esse é melhor' até porque isso não existe realmente: melhor ou pior é questão de gosto. É essencial principalmente do ponto de vista prático: conseguir jogadores para sua mesa.
Eu já sofri muito com isso. MESMO.
Você propor uma idéia que seus jogadores não se interessem não vai vingar: ou eles recusam a jogar, ou se acontecesse fica uma porcaria(por desinteresse). [com suas exceções]
Dependendo do seu contexto, você pode (e provavelmente está) numa verdadeira 'competição de mercado'. Se sua ambientação não oferece nada de interessante que atraia interesse, os jogadores vão insistir em jogar aquele outro cenário, ou vão curiosamente dar preferência a mesa de outro narrador. Há duas exceções a isso: quando são amigos próximos(o que cai no parágrafo acima) ou quando os jogadores não têm outra opção.
Claro, se eles não têm opção você pode empurrar goela abaixo o que bem entender... ao risco de desagradar e dissipar o grupo. Mas sério, você cogita mesmo isso? A idéia é todos se divertirem, e o pequeno sacrifício por optar por uma ambientação que te agrade menos(mas que também consiga te divertir) mas satisfaça à toda a mesa vale muito: um jogo desanimado não diverte a ninguém, nem ao narrador. Como sempre com exceções, mas vamos deixar os egocêntricos de lado.
A idéia não é desanimar ninguém a criar suas ambientações. Pelo contrário. Se criar seu mundo é sua vibe(eu sou assim), ajuda a criar os motivos que justifiquem. Se pensar pelo lado prático outro cenário(seu ou oficial) pode ser melhor do que bolar um novo, mas mesmo o ponto de vista prático justifica criar uma ambientação; dependendo da quantidade de elementos que você quer explorar, adaptar uma obra perde o sentido e no final das contas dá mais trabalho. Se você não tem nenhum foco ou grande propósito, perceber que teria de adaptar tudo(de um cenário) para alcançar suas necessidades é o sinal verde para criar um.
OS PROPÓSITOS DE SHALAZAR
Por um lado foram mecânicos. É o meu cenário hack n' slash, rpg clássico, com calabouços e aventura e etc... justamente o tema mais batido e exaustaviamente explorado. Mas prefiro(por diversos motivos, principalmente gosto pessoal) outras regras e magias e whatnot que me dariam trabalho demais adaptar em outra ambientação. Mais fácil foi criar o meu cenário de fantasia *geral*, para o meu sistema.
Mas está longe de ser o principal motivo(e nem era: eu tinha outros, e um 'principal', mas cortei todos por redundância).
Principais:
Sátira e Bem humorado
-O que eu quis:
Talvez a maior motivação seja a sátira. Ou o que eu chamo de 'sátira nobre', a que satiriza mas não deixa de homenagear: um ode a todos os clássicos, da fantasia, mitologia, lendas e rpgs. Sem perder a oportunidade de cutucar e evidenciar as 'falhas' típicas, incongruências e etc típicas do gênero fantástico.
Eu amo comédia mas sou bem chato com ela. A comédia mais comum, pastelão e exagerada me cansa. E eu adoro ambientações densas e sérias igualmente como gosto de humor. Uma ambientação que se leva muito a sério mas enfia, por exemplo(só o primeiro que me ocorreu), uma raça como kenders logo ali no canto quebra minha imersão. É talvez um vício ou gosto meu, mas não gosto de incluir nada que 'destoe' de tons sérios nos outros jogos e precisava de um espaço para exercer as idéias mais engraçadas.
-O que busco, resultados desejados:
Um jogo onde tudo típico de um rpg se sinta em casa: os altos e os baixos, inclusive todos os deslizes. Todo mundo já passou por situações inusitadas a hilárias durante o jogo, e com certeza momentos memoráveis. São ótimos mas podem destoar quando se quer narrar um épico ou campanha densa: mesmo todo mundo rindo(ou nem todos, muitas vezes o narrador não se inclui por esse motivo) eles podem destoar completamente do jogo ou levar a campanha para rumos inesperados.
Eu quis fazer um jogo onde o humor e os absurdos são justificados quando acontecem, onde as desventuras do acaso são comuns e ponto central de toda a trama(falarei mais sobre isso quando explicar destino e acaso em shalazar); Onde aquela péssima rolagem ou burrada que leva todo o grupo para o buraco e impede a profecia de se realizar não apenas combina, como em teoria está quase predestinado a ocorrer. Os deuses parecem se divertir às custas dos homens e principalmente dos chamados heróis.
Um mundo onde Arthur tirar a espada da pedra conforme profetizado para logo depois desunificar toda a bretanha e ainda quebrar a excalibur é o mais provável de acontecer, e com motivos. Onde o jogador impulsivo, a burrada e a provável cena onde a mesa se irritaria não precisam acontecer... é parte do espírito da coisa.
-Porque jogar esse ao invés de outro:
No aspecto do humor/sátira, simplesmente por ser uma opção branda(e peculiar). Jogos como Toon e Paranóia são outro nicho, e Shalazar é menos comédia e mais para aventura descompromissada mais bem humorado que a maioria. O feeling é um diferencial.
Destino... ou falta dele
Aqui entra também no lado 'mecânico' da coisa(com regras próprias/independentes de sistema): rolagens de 'acaso' (catástrofes, explosões, e qualquer coisa caótica sem efeito direto dos personagens) usam rolagens aleatórias 'viciadas'... só para dar um exemplo.
O destino existe, embora uma versão bem particular, e pode ser subvertido. Ter ou não um destino, influenciar no de terceiros, ir contra o próprio ou subverter importantes eventos predestinados é um elemento comum, praticamente tangível, com regras próprias e presença constante no cenário.
Mítico
Mas não como glorantha e outros... principalmente pela presença da sátira e subversão. Profecias existem, podem ser reais ou falsas, podem ser criadas(!) e subvertidas, com efeitos diretos na vida dos mortais e principalmente heróis.
Eu sempre quis explorar diversos aspectos míticos como reais e afetando diretamente o jogo, coisas como 'desafios/tarefas'(ex: 12 trabalhos de heracles), profecias, geas célticos e precognição(só para citar alguns), justificados... mas ao mesmo tempo sempre teve o problema do incômodo: predestinar coisas, se realmente aplicado, tem como consequência limitar a ação/liberdade dos jogadores. Eu não queria isso. Prever o futuro também é sempre um problema em qualquer jogo sandbox e rpgs... era preciso um lugar onde tudo isso fosse real, mas ao mesmo tempo tudo pudesse ser apropriadamente ignorado, desfeito ou subvertido... o que casou bem com o tema caótico, satírico e instável de Shalazar.
Eu resumiria Shalazar como um filho de uma meretriz, forjado num bacanal entre todos os mitos sob um feitiço do próprio loki e educado por um sátiro.
-O que eu quis:
Matar dois coelhos numa cajadada: um cenário mítico, lendário e até poético, e também um que subvertesse tudo isso.
-O que eu busco, resultados desejados:
Resgatar riquíssimas referências de toda nossa cultura(humana) que hoje são tidas como batidas com uma nova roupagem, resgatar esquecidas, re-imaginar(ou não) as bregas e principalmente explorar tudo isso com regras tangíveis, que os jogadores percebam, sintam no jogo e possam manipular a seu favor.
-Porque esse e não outros:
Não sei se algum faz isso, não encontrei, não dessa forma.
E ao mesmo tempo 'combinar' isso com o feeling dungeoncrawl, hack n' slash e overpower: não importa o que as profecias digam, aventureiros tendem a ser as criaturas mais imprevisíveis, gananciosas e capaciosas do mundo, optando pelo ciclo vicioso de conquistar fortunas à espada para comprar uma nova espada para conquistar fortunas... ou poder pessoal. Um contraste, ironia, subversão.
Aventura e ação desenfreada
O mais difícil. Ou o mais fácil, depende do ponto de vista. É bem fácil de conseguir... dentro do contexto de aventuras, o que depende do narrador. Minha intenção sempre foi um mundo que instigue e conspire para que isso aconteça, das mecânicas à apresentação e todos os menores elementos.
Explorar templos é legal. Fugir de um enquanto desabe é mais. Ao mesmo tempo que foge de outro grupo de aventureiros, numa carroça pegando fogo prestes a explodir enquanto luta com um orc eunuco sendo estrangulado por um anão bêbado à beira do fim do mundo é outra coisa que não sei descrever.
Propósitos a curto e longo prazo, propósito geral
A curto prazo(cada sessão), oferecer uma caixa de surpresas; um mundo imprevisível onde não se sabe o que esperar a cada sessão de jogo, regado a exploração e ação.
A longo prazo(campanhas inteiras), uma jornada memorável sempre, simplesmente por todas virarem algo peculiar/inesperado. Adoro lembrar bons momentos divertidos e voltar a gargalhar, a intenção é multiplicá-los e ainda manter uma história internamente coerente, e dependendo do ponto de vista séria ou épica mesmo com isso.
No geral, um modo de resgatar e relembrar o que há de tão bom nos velhos clichés 'oldschool' do rpg de um modo diferente, num mundo que pareça muito familiar e ao mesmo tempo algo totalmente diferente.
Se um jogador ou leitor interessado sorrir enquanto conhece Shalazar, ficar atônito mas com expectativa com o rolar do acaso, e voltar a se interessar nos velhos clichés com novos olhos(após uma boa sessão), eu alcancei os resultados desejados. Enquanto não conseguir vou continuar tentando
Ficou longo[de novo]
Acho importante compartilhar o que eu vejo como propósitos, e quais são os de Shalazar, porque já distribui as pedras que eu espero levar se preciso: o que criticar. Irrelevantemente do seu gosto, pode perceber algum ponto que não notei que vai contra justamente os propósitos que pretendo.
E são essas críticas que quero ver. Eu quero que critiquem, qualquer crítica(mesmo não construtivas), todas serão bem vindas.
Ainda não li, mas passei pra elogiar o formato. Quando a gente pega um livro pra ler, dez páginas é de boa. Mas, num fórum, é muita coisa. Os Spoilers são uma boa pedida, e o tamno do texto "direto ao ponto" é um tamanho que não assusta. Por favor, continue assim.
Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo. Hegel, 1807