Um Sonho de Morte
Sonhei que estávamos no Inverno, numa dessas noites estranhas em que a névoa pálida costuma descer do céu – ou levantar das profundezas - para acariciar e beijar a terra e as árvores. Perdido (não como um náufrago ou coisa do tipo, embora todos nós sejamos náufragos do asfalto), eu caminhava por essas velhas ruas do centro, de onde de cada beco parecem brotar cem histórias de amor, traição e morte. De onde ainda se ouvem, se colarmos com muita atenção nossos ouvidos à friagem rouca dos muros de pedra, os gritos dos antigos penitentes e o sibilar dos chicotes dos capatazes ardendo-lhes a pele.
É. Naquele sonho houve tempo para que eu pensasse nos que sonharam antes de mim. E naquela noite o corte afiado dos velhos punhais era uma lembrança sedenta que ameaçava minha garganta. Toda noite é noite de perigo, sobretudo as noites frias e nevoentas, pois a neblina, essa profética inquilina, me oferecia o fastidioso travesseiro de fronhas brancas para que nele eu me deitasse.
Minha bota pisava o chão úmido às vezes conturbando alguma poça d’água porque talvez dentro do sonho a tarde tivesse sido chuvosa (nunca me acostumei com a idéia de que naquele sonho a noite era eterna). Eu enrolava minhas mãos dentro do sobretudo, afundando uma luva na outra, escondendo-me sob a rigidez protetora daquele amigável agasalho. Entrementes, calculava os meus passos, prestava atenção aos ínfimos pormenores daquele som solitário, que, como um metrônomo, povoava as ruas do centro. Não. Ninguém cruzou o meu caminho naquele sonho andarilho. Era a solidão daqueles becos, a angústia, o ermo deserto daquele isolamento noturno que me dava medo. O medo que eu sentia era aquele mesmo que sentimos quando acordados; aquele medo que nos faz olhar para trás, mesmo sabendo que ninguém nos acompanha. Eu fugia da solidão, mas não sabia que era ela que me acompanhava.
Como eu disse, assaltavam-me a memória as histórias de fogueira que contavam nossos antepassados. Uma delas, em especial, já há muito esquecida (só a linguagem dos sonhos é suficiente para que nosso inconsciente resgate lembranças tão tristes e longínquas), falava de um crioulo da região, famoso pela habilidade com o facão que levava consigo. Diziam os moradores da antiga vila que esta cidade outrora havia sido que havia aprendido a nadar com Mãe D’água, porque sobrevivera a uma emboscada - uma tentativa de afogamento - que lhe fizeram na foz do córrego que por aqui antes passava. Hoje o riacho já se encontra soterrado e do crioulo, que se chamava Tircino, não há outro que saiba, salvo algum velho que tenha ouvido essa história de outro velho.
A rememoração foi-se embora quando pisei um galho seco e seu barulho me trouxe de volta ao caminho que percorria. Eu deixava para trás o labirinto de tortuosas vielas, de onde os olhos sorrateiros de Tircino faziam vigília; em cada beco, em cada latão de lixo revirado por um gato vagabundo, nos secretos e recônditos canteiros de pó. Como sonhava, não sabia de onde vinha, nem para onde ia. Certo é que no caminho eu cruzava com uma legião de baratas e outros insetos menores. Talvez fosse o caso que, naquela situação, só importava-me o caminhar e o cheiro de terra molhada que agora penetrava mais forte em minhas narinas. Eu pisava agora um tapete de folhas, que tinha as cores da noite e que se estendia em minha frente, por toda a calçada que ladeava o cemitério, quando, enfim, passei em frente ao velório que ficava do outro lado da rua.
Não sei o que me fez desviar a atenção do tapete de folhas – elas em muito me chamavam a atenção. Já havia feito e refeito esse caminho tantas vezes, embora acordado, mas nunca me ocorreu que um dia, andando nesta calçada, eu haveria de olhar para o lado e ver meu nome completo escrito no painel onde se escrevem os nomes dos defuntos. Não foi pânico o que senti, porque nos sonhos nossos sentimentos não correspondem com a mesma lógica aos estímulos que recebem. Fiquei, é certo, muito surpreso, indagando à noite o significado, ou a simbologia (embora não fosse aquele um sonho lúcido), daquele fato. Não parei de caminhar. Continuei andando, esperando aquele entendimento de mundo que só de noite nos visita.
Ah, mas até em meus sonhos sou incapaz de não ceder espaço à minha vaidade! Senti também, e esta é uma das lembranças daquele sonho que guardo com maior interesse, uma profunda indignação, porque o velório estava aberto e não havia ninguém por lá. Ninguém chorando, ninguém lamentando a minha morte, ninguém cobrando a entrada ou vendendo flores para um ninguém que as comprasse. Nem havia ao menos um retirante que fosse para cuspir em meu caixão. Não. Talvez nem meu próprio corpo estivesse lá, e nem o caixão. Os únicos que me tinham compaixão naquela noite eram as raízes velhas (que saltavam para fora do concreto da calçada) e as copas frondosas das árvores que, enfileiradas como num teatro de terror, abriam seus braços e sorriam aquele sorriso de trevas.
Do velório eu me distanciava, e voltava às velhas histórias que povoavam o grotesco imaginário popular. A voz de Tircino dizia, dentro de mim, serenamente, que, assim como ele, eu era apenas mais um personagem de uma tragédia que já fora escrita e encenada dentro da memória ulterior de um povo e que talvez eu nunca estivesse tão vivo agora que tinha outro nome: o meu nome de defunto. Disse-me que para conhecê-lo (devido a algum capricho mórbido do destino ele não podia revelar este meu novo nome), eu devia adentrar o cemitério e encontrar a minha lápide. Como eu poderia saber qual era minha lápide se não sabia meu nome? Esse tipo de pergunta seria conveniente e faria todo o sentido se eu não estivesse onde estava.
Escalei os baixos muros que me separavam do cemitério e não demorei até que encontrasse minha lápide; só havia uma grande lápide em todo o cemitério. Havia um barulho fresco de riacho nas redondezas. A vaidosa lua iluminou os caracteres entalhados na rocha, e por um minuto toda a neblina se dissipou. Ali estava inscrito o nome que é a vida e morte de todos os nomes e que, de tão valioso, só a nós compete chamarmos dessa maneira: “Eu”.
Esbocei um sorriso antes de acordar empoçado em meu próprio suor, num emaranhado de lençóis amarelos.