por Gehenna em 01 Set 2007, 14:09
Parte 27: Procura
Pouco depois, Tânia, a mãe da Graça, chega do supermercado, carregando algumas sacolas de compras. Não fico muito mais tempo do que isso, para não ter que ver o sogro ou o cunhado. Pelo menos, por enquanto. Volto pra casa.
“E esse gato, Athos?” Minha mãe me indaga pouco depois de minha chegada.
“Ah, ganhei do Bruno. Achei que seria legal termos um bicho de estimação. Podemos ficar com ele?”
“Deixa, mãe. A gente cuida dele”. Luna pede, realmente querendo ficar com o bicho. Pelo menos ela está se comprometendo a ajudar com ele.
“Ele solta pêlos, mas já sabe fazer a sujeira na caixa de areia”. Digo, para minha mãe não deixar o gato em casa, mas disfarçando, afinal de contas, para todos os propósitos, fui eu que o trouxe.
“Nós não temos uma caixa de areia”.
“Ih, então tem que comprar, senão ele vai fazer no tapete”.
“Athos, você não está ajudando muito!”
“Tudo bem. Acho que vocês devem ter um bichinho mesmo. Não dá pra criar um cachorro do porte do Zeus num apartamento, mas não vejo problemas com um gato”. Ela se decide, lembrando de Zeus, meu cachorro que morreu antes da mudança. Como se esse filhote de cruz-credo travestido de projeto de tamborim pudesse substituir um cão como o Zeus. Aquele, sim, era um animal decente, não esse felino inútil.
“Ah, uma menina te ligou, Athos”. Diz Luna, se lembrando.
“Quem?”
“Uma tal de Rosana, ou alguma coisa assim. Falou pra você ligar pra ela depois”.
“Ah, ok”. Roxane, não Rosana.
Depois de resolver que ficaremos com o gato, jantar e tomar banho, vou para o quarto terminar minhas preparações. Não quero mais ser surpreendido indefeso. Da próxima vez que me encontrarem, eu estarei esperando-os. Mas ainda preciso fazer algo para me esquecerem, senão virão vampiros cada vez mais perigosos ao meu encalço e, mais cedo ou mais tarde, vou acabar perecendo. Pelo que eu entendi, vieram atrás de mim por eu ter eliminado aquele traficante. Ou ele era importante, ou tinha relações com gente importante. Acredito que, além da vingança, eles tenham uma necessidade de justiça, para mostrar que não se deve mexer com eles. Preciso entende-los para me antecipar ou não vou durar muito. Querem minha morte.
-----------------------------------------------------------------
“Oi, Athos. Que bom que ligou. Como estão os ferimentos?” Diz Roxane, depois que eu me identifiquei pelo telefone...
“Estão totalmente curados. Acho que o tratamento do seu pai surtiu efeito neles também”.
“Provavelmente. Cortes como aqueles não cicatrizariam tão rápido assim sem uma ajudinha”.
“Você me ligou na quarta. Desculpa a demora pra retornar, sabe como é a correria, né?”
“Sei sim. Queria só saber se estava tudo bem com você. Precisamos conversar melhor. Queria entender direito o que aconteceu naquela noite”.
“Certo. Pode ser domingo à noite?”
“Pode, sim”.
“Algum local de preferência?”
“Pode ser no Goiânia Shopping? Como disse naquele dia, faz um tempão que não vou lá”.
“Claro, sem problemas. Domingo, às oito e meia, na praça de alimentação do Goiânia Shopping, fechado?”
“Fechado”.
“Então a gente se vê lá”.
“Ok. Um beijo. Tchau”.
“Outro. Até mais”.
Dois dias se passaram. Não saí nenhuma vez, desde que Lóki chegou. Meu sono voltou ao normal e, até agora, não tive nenhuma visita que tentasse me matar. O anoitecer da sexta-feira chega. Abro a cartolina, devidamente preparada, no chão do meu quarto, me posiciono dentro do círculo, me concentro na escuridão à minha volta e recito as palavras de ativação, me focando no resultado da magia. “Rex Umbrae”. Um ritual que se tornou rotina, sendo executado a cada anoitecer, desde que percebi o perigo no qual havia me envolvido. No bolso, giz e um pedaço de madeira, cortado do cabo de um rodo, com entalhes sujos com sangue seco, retirado dos meus próprios ferimentos. Nas costas, desenhados com pincel atômico, símbolos arcanos que poderiam até se passar por estranhas tatuagens. Prendo o cabelo, visto o sobretudo e amarro o lenço no rosto. Abro a janela e fito as várias luzes da cidade, porém, a escuridão é muito maior. Coloco a palma sobre os olhos para fazer com que tal imensidão se torne minha visão. “Nox Óculus”. Minha percepção se aguça, sob o manto de trevas trazido pela noite. Transmuto minha sombra num novo círculo místico, para que eu possa identificar melhor os seres que caminham na noite. “Conscientia Tenebrarum”. Sinto, imediatamente, duas presenças próximas a mim. Uma fraca, no quarto ao lado, reconheço como minha mãe e meus pensamentos me indagam novamente sobre esse fato. Lembro que devia ter perguntado sobre ela para Khestalus. A outra, bem mais forte, é Lóki empoleirado na cabeceira da cama, me olhando e sorrindo sadicamente. Olho para o chão, cinco andares abaixo.
“Menino-demônio se esborracha no chão. Lóki vai rir, vai sim”. Ele diz com pessimismo, antevendo minhas ações.
“Você vem comigo, Lóki. É meu guia, lembra?”
“Lóki vai com menino-demônio, mas Lóki ri assim mesmo”.
Sombras se mesclam às minhas roupas e cabelos, me concedendo uma aparência muito mais tenebrosa, quase me fundindo à escuridão ambiente. Um demônio de sombras surge onde antes havia um adolescente idiota vestido como idiota e prestes a fazer inúmeras coisas idiotas. “Brachi Abyssus”. Tentáculos de trevas solidificadas surgem de minhas costas, saindo dos símbolos desenhados em minha pele, como extensões de mim mesmo. Subo no parapeito e olho mais uma vez para o chão. Lóki pousa no meu ombro. Por um instante, como um costume quase instintivo, penso em pedir proteção divina, com o clássico ‘seja o que Deus quiser’, mas reflito sobre isso e chego a conclusão que não tenho esse direito. Com a adrenalina já correndo em meu sangue, salto da janela.
A sensação de estar suspenso no ar me assusta de início. Os tentáculos suportavam meu peso, se segurando no parapeito da janela, enquanto meu corpo permanecia no ar, como se flutuando. Antes que alguém pudesse me ver, os tentáculos se movem agarrando nos parapeitos das janelas superiores, me elevando, pelo lado de fora do prédio, até o topo. Observo a cidade mais uma vez. Imagino quantas coisas ela esconde, quantos segredos ela guarda e quantas criaturas ela abriga. Olho para o chão, agora a quatorze andares de distância.
“Depois que menino-demônio burro morrer, Lóki vai comer muita carne. Vai sim”.
“Se for esperar minha morte, pra comer, Lóki, você vai morrer de fome”. Respondo, me assustando com minha voz, aparentemente distorcida pelas sombras mescladas ao lenço sobre minha boca.
Moldo as sombras dos prédios, postes e carros ao meu redor, criando um enorme círculo arcano centrado em mim. “Creo Tenebrae”. As luzes começam a se enfraquecer e se apagar, aumentando o domínio da escuridão. Me concentro. Preciso encontrar alguém com conhecimentos úteis. Talvez um servo que tenha bons conhecimentos ou em contato com alguém que os tenha. Fico cerca de dez minutos parado, esperando as sombras me apontarem uma direção, ignorando a presença e comentários de Lóki, que voava, ria e me insultava, até que sinto uma presença distante e em movimento. Me atiro de cima do prédio, me esquecendo por um instante de onde eu estava. Os tentáculos me levam em segurança até o chão e trato de correr para interceptar a fraca presença captada.
-----------------------------------------
Após ajudar a traçar os novos objetivos de ampliação da Irmandade e pegar minhas obrigações para tal, volto para casa. É fácil manipular os vereadores recém-eleitos, mas aqueles mais experientes dão algum trabalho. Não me surpreenderia se descobrisse que alguns deles têm seus próprios Pactos. Eu gosto do que faço, sou bom nisso. O desafio é interessante e as recompensas mais ainda. Basta dizer as coisas certas para as pessoas certas nos momentos certos e esperar que eles façam o que desejamos. Adoro isso. Trânsito praticamente inexistente à essa hora, por isso deixo o pé pesar um pouco mais no acelerador. Aparentemente, acabou a energia em uma parte da cidade. Ruas e casas na completa escuridão. Diminuo um pouco a velocidade, por precaução. Percebo a intensidade dos meus faróis diminuir, juntamente com a, já baixa, visibilidade da rua. Diminuo ainda mais a velocidade quando, de repente, alguma coisa salta sobre meu carro, enquanto minha porta se abre com força. Piso no acelerador ao mesmo tempo em que saco a pistola do coldre para tentar acertar o que quer que seja que estava me atacando, mas alguma coisa gelada me arranca violentamente de dentro do carro e me joga contra o capô, ainda me segurando. A escuridão era quase completa, não fosse a claridade tímida que meus faróis tinham se tornado. De pé, sobre meu carro, estava a criatura que me fizera aquilo. Ele parecia fazer parte da escuridão, porém era visivelmente tangível. As sombras, que eram seu corpo, tremulavam tridimensionalmente com o vento. Ele me ergueu, usando as trevas gélidas que, apesar da ausência de dobras, pareciam ser seus braços, sendo que um deles me enforcava e amordaçava enquanto me aproximava dele. Percebi que ele tinha chifres, mas não tinha boca, porém isto não o impedia de falar. O som de sua voz era baixo e distorcido, soando de forma sinistra.
“Como ousa invadir meu território, verme? Como ousa profanar meu ar com a imundice de seu mestre? Se arraste de volta até ele e avise-o que não tolerarei futuras invasões”.
Enquanto ele falava, a pressão aumentava em meu pescoço, me sufocando, e o frio queimava minha pele, aumentando a dor. Ao terminar, ele me arremessou contra a rua, onde caí rolando e me ralando, porém ainda vivo. Quando olhei novamente, ele havia desaparecido. Olhei a minha volta, não encontrando nada além da pesada escuridão ambiente. Atacado por um demônio de sombras que clamava parte da cidade como sendo seu território. Provavelmente, toda essa parte mais escura. Duvido que sobreviva muito tempo chamando tanta atenção, mas enquanto ele estiver por aqui, é melhor que a Irmandade não se envolva com ele. Entro no carro, dou a partida e saio dali, enquanto pego o celular e ligo para Antônio, o mestre de cerimônias e representante da Irmandade na cidade.
“Pode falar”.
“Antônio, aconteceu uma coisa comigo e acho que a Irmandade devia ser informada”.
“O que foi?”
“Voltando para casa, agora, fui atacado por um tipo de demônio de sombras. Não consegui identifica-lo. Era um monstro estranho, parecia feito de escuridão. Ele parece estar reclamando parte da cidade como território particular. Acho que, de alguma forma, ele identificou em mim as bênçãos dos Pecados. Acho melhor informar a todos para se manterem longe da área dessa criatura”.
“Você consegue definir exatamente qual a região?”
“Acho que sim. Era grande, teremos de delimitar mais uma área proibida, no mapa”.
“Ele te deixou vivo. Pode ser uma armadilha. Talvez você esteja sendo seguido”.
“Nenhum carro ou moto me seguindo, mas mesmo assim, estou acabando com minha gasolina para despistar qualquer possível perseguidor”.
“Não vá para casa. Passe a noite em um hotel. Arranje um mapa e delimite a área. Vou mandar o Flávio até você, para pegar a delimitação. Cancele qualquer vínculo com a Irmandade até segunda ordem”.
“Droga, cara, me ferrei!”
“Talvez. Não sabemos ao certo. Podemos estar exagerando, mas não podemos correr o risco de expor a Irmandade”.
“Eu sei. Anota o endereço do hotel”.