Sombra

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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:11

Parte 31: A Irmandade

Conseguia sentir duas presenças dentro da casa, naquela noite. Presenças fracas, indicando servos. Um no andar de cima, o outro no andar de baixo. Além deles, não sabia o que mais podia encontrar. Mantive a iluminação normal do local, para não despertar suspeitas, mesmo porque, não havia muitas luzes e conseguiria me esconder bem naquele ambiente. Saltei o muro sem dificuldades, usando os tentáculos que saíam dos símbolos desenhados em minhas costas. Mandei Lóki vasculhar entrando por alguma janela do outro lado da casa e me aproximei furtivamente. Quando já estava próximo à porta de entrada, fui acometido por uma forte sensação de perigo e rolei no chão escapando por pouco de uma rajada de tiros que arrancaram pedaços da parede. O pior foi perceber que os disparos foram dados por um homem que estava no alpendre, próximo à porta e que, de alguma forma que não conseguia entender, eu não havia notado. Ou melhor, eu o havia ignorado, mesmo ele estando ali o tempo todo, segurando um fuzil!

Utilizando os tentáculos para cobrir a distância que nos separava, tomei o fuzil de suas mãos disparando algumas balas perdidas, enquanto nocalteava-o com alguns golpes e o jogava contra a parede, desacordando-o. O fuzil parecia ter um silenciador, pois as explosões dos disparos eram abafadas, porém isto não seria o bastante para evitar que me denunciasse para possíveis outras pessoas na casa. Como fui cometer um erro tão estúpido? Porque não o ataquei antes dele me denunciar? Porque, diabos, ignorei sua presença? Então percebi um grande tapete sobre o qual estava o atirador e uma cadeira de fios. Um círculo cheio de símbolos se encontrava desenhado no tapete. Não era apenas uma peça decorativa e estava embaixo da cadeira por algum motivo. Provavelmente, o círculo fora usado para algum feitiço responsável por eu ter ignorado o homem. Não podia desistir agora. Mesmo sendo arriscado, tinha que entrar na casa. Podia sentir as presenças se movendo no interior da construção, provavelmente se preparando contra mim.

Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Procurei por chaves nos bolsos do homem caído, mas nenhuma fora útil. Como minha presença já fora alertada, decidi derrubar a porta. Me afastei um pouco e a chutei. Nada. Nos filmes parecia mais fácil. Joguei meu corpo contra ela. Apenas barulho. A porta continuava inteira e firme no batente. Chutei mais uma vez com toda minha força, mas fora em vão. Não conseguia acreditar que uma porta de madeira pudesse ser tão resistente. Me preparei para mais um chute, quando sou tomado por uma sensação de perigo que me faz jogar-me no chão. Buracos de bala surgem na porta. Alguém estava atirando do lado de dentro. Uma das presenças. Sem barulho de explosões. Também deve estar usando silenciador. Mesmo diante de uma invasão, evitam chamar a atenção da vizinhança e, consequentemente, da polícia. Devem ter muita coisa para esconder.

Pego o fuzil do homem caído e uso-o contra a porta, tentando acertar o atirador. Assim que percebo que ele se afastou para se proteger, chuto a porta novamente. Mais alguns tiros para mantê-lo longe e mais chutes para derrubar a maldita porta. Os buracos de tiros e meus golpes estavam quebrando a porta que dava acesso a um hall de entrada. Depois de mais alguns chutes, a porta se quebrara ao meio, apesar de suas dobradiças ainda estarem firmes. Largo o fuzil já sem munição e entro. O pequeno hall tinha dois portais de acesso, sendo que a presença que sentia estava à direita, onde encontrei uma escada que levava ao segundo andar, uma porta que deveria dar para um pequeno armário debaixo da escada e dois portais, sendo que a presença estava novamente à direita.

Toda a casa se mantinha escura, sem nenhuma luz, o que eu julgava ser uma vantagem para mim. Atravessei o portal da direita, entrando em uma sala, mas mal entrei, já saltei para trás, escapando por pouco de um tiro na cabeça, disparado pela pistola com silenciador do homem cuja presença eu sentia e que estava me esperando rente à parede da sala, próximo à porta. Percebendo meu recuo, o homem, que usava óculos escuros, mas parecia enxergar tão bem quanto eu, já desferira um golpe usando uma adaga empunhada com a outra mão na altura de meu pescoço. Teria sido degolado se os tentáculos não me puxassem para trás bem a tempo. Mal coloquei os pés no chão e ele já apontara a pistola novamente para mim. Evitei o disparo arqueando rapidamente meu corpo para trás me apoiando nos tentáculos e erguendo a perna num chute contra a arma de fogo, jogando-a para longe.

Os tentáculos impulsionam meu corpo corrigindo minha postura a tempo de segurar seu braço e interceptar um novo golpe com a adaga. Reagindo rapidamente, ele desfere um soco com a mão que agora se encontrava livre, sem a pistola, mas que também consigo bloquear, segurando seu punho antes que me acertasse. Quando pensei que dominava a situação, meu adversário salta chutando meu peito com os dois pés, se soltando e ganhando distância. Dou um passo para trás devido ao impacto e já salto de volta ao hall, para evitar os disparos de uma segunda pistola que ele levava na cintura, a qual sacara logo que caíra no chão. Esperei por um momento. Os tiros cessaram, mas ele não saiu do lugar. Parecia esperar que eu saísse de meu esconderijo.

Silêncio. Saio do hall lançando os tentáculos contra meu adversário quando caio em sua armadilha. Ele não me esperava com uma pistola, mas sim, com uma esfera de chamas brilhantes disparada contra mim que destrói dois de meus tentáculos que se interpõe em seu caminho e me acerta o peito me jogando para trás, atravessando um portal e caindo no chão de uma cozinha. Sinto a ferida arder com a queimadura provocada pelo estranho fogo, mas não gasto tempo com a dor, rolando para o lado, apagando o resto do fogo e saindo da linha de tiro de meu algoz que já empunhava a pistola novamente e caminhava em minha direção. Num rápido vislumbre, vejo a outra pistola caída no chão e com um dos tentáculos restantes arremesso-a para minhas mãos no exato momento em que o estranho de óculos escuros adentrava o cômodo. Por um milésimo de segundo, nos fitamos, um mirando o outro a uma distância de pouco mais de um metro. Tiros à queima-roupa, impossível para qualquer um errar. No milésimo seguinte ele dispara, eu hesito.

Mais um de meus tentáculos é destruído ao entrar na frente do disparo e receber o tiro por mim. Puxo o gatilho. O disparo acerta sua mão que segurava a pistola. Uma expressão de dor se forma em seu rosto ao ter a mão inutilizada, mas não cessa seus movimentos. Numa ação rápida ele arremessa a adaga que segurava com a outra mão, me fazendo perder a mira e me abaixar para evitar a lâmina. Me levanto a tempo de ver seu pé se aproximando rápido de meu rosto num potente chute que me joga para trás. Ele se joga sobre mim, apoiando as pernas em meus braços para me prender e levando a mão boa ao meu pescoço para me estrangular. A pressão em minha garganta crescia juntamente com a falta de ar. Como reflexo, meu último tentáculo se enrola no pescoço de meu algoz, forçando-o a me soltar. Ele se levanta sendo puxado pelo tentáculo e permite que eu me levante também, finalmente dominando a situação. Ele logo perde a consciência devido a falta de ar e eu o solto no chão.

Abro a torneira da pia e jogo água fria em meu peito que ardia com uma terrível queimadura que fedia a minha própria carne queimada. Eu nunca havia sentido tanta dor. Evitava olhar o quão feio estava meu peito para não pensar na cicatriz que ficaria ou como eu a explicaria. Enquanto isso, sinto o gosto de sangue se acumulando com saliva na boca, afasto o lenço do rosto e cuspo. Preciso terminar o que comecei. Procuro algo na cozinha para amarrar o homem inconsciente no chão. Arranco a adaga presa na parede e deixo-a na pia. Pego a pistola que soltei no chão devido ao chute no rosto e me dirijo para as escadas, torcendo para que a presença no andar de cima fosse mais fácil de lidar. Mal piso no primeiro degrau, Lóki chega, entrando pela porta que quebrei.

“Uh, menino-demônio forte. Casa trancada com magia. Difícil entrar”.

“Difícil, não impossível”. Respondo após Lóki confirmar o que eu imaginara. A porta estava lacrada com magia. Portas de madeira comuns, como aquela, não são tão resistentes.

“Porque menino-demônio lutar? Porque menino-demônio não fica amigo? Se amigo, troca favor pessoas e ganha o que quer”.

“É o que você faz, não é, Lóki? Me espiona para Khestalus em troca de algo. O quê, Lóki? Carne crua? Não consigo pensar em algo mais que você possa querer”. Nesse momento, vejo que o monstrinho que voava próximo a mim estava todo sujo de sangue e sorri maliciosamente como se já prevesse minha pergunta. “De onde veio esse sangue, Lóki?”

“Carne de humano gostosa. Homem caído na porta muito feio agora”. Seus olhos vermelhos e brilhantes jorravam crueldade enquanto sorria para mim. Evito imaginar o que ele quis dizer com ‘muito feio agora’ para manter meu jantar no estômago. Continuo subindo as escadas e chego a um corredor com uma porta na extremidade esquerda, outra na extremidade direita e uma terceira próxima à porta da direita. Sinto a presença e me dirijo à direita, até o final do corredor.

“Feiticeiro tranca casa. Feiticeiro poderoso. Menino-demônio burro”. Diz Lóki, sob o corrimão da escada, sem se aproximar. Estaria me avisando para tomar cuidado com a porta? Me afasto da porta e faço o último dos tentáculos em minhas costas girar a maçaneta. Ele mal a toca e o chão desaparece sob meus pés quando sou atirado na direção oposta por uma explosão que lança pedaços de madeira para todos os lados. Meu corpo bate contra a porta do outro lado do corredor e caio ao chão sentindo como se tivesse sido espancado por toda uma torcida organizada. Um zunido em meu ouvido me impede de ouvir qualquer coisa. Me levanto lentamente, me apoiando. Cada célula do meu corpo dói. Lóki não está mais no corrimão. Provavelmente, o covarde fugira. Penso se as coisas poderiam ficar piores e de repente elas ficam. Um homem aparece, atrás do batente da porta destruída, apontando um fuzil em minha direção.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:12

Parte 32: Recompensa

Eu o fito, iluminado pela luz do aposento onde se encontrava. Todos os tentáculos em minhas costas destruídos, uma grande distância entre nós e nenhum tempo. Basta uma bala para isso tudo acabar e o estreito corredor o proíbe de errar. No chão, a pistola que larguei devido a explosão. Com todas as dores no corpo, não sei se seria útil mesmo se estivesse em minhas mãos.

“Lóki avisou...” O pequeno diabrete surge voando pelas escadas com seus olhos vermelhos brilhantes me dando um segundo, enquanto meu adversário se distraía. Não presto atenção no que o monstrinho voador fala, pois estou mais ocupado ignorando os músculos moídos que reclamavam por terem de se mover. Um salto na direção da pistola. Disparos. Tiros vindo em minha direção, após a atenção de meu algoz voltar do diabrete para meu movimento brusco. Tiros indo na direção dele, enquanto meu corpo se chocava com o chão e meus músculos ameaçavam pedir demissão. Ele, imóvel, erra o alvo em movimento. Eu, em movimento, acerto meu alvo imóvel. Sorte. Muita sorte.

Atingido, ele se esconde atrás da parede. Eu concentro sombras no teto do aposento, formo o símbolo, foco meus pensamentos, recito as palavras de invocação e lhe trago uma surpresa. Trevas solidificadas surgem pegando-o desprevenido. Elas o desarmam, se enrolam nele e grudam seu rosto contra o chão, imobilizando-o. Eu luto contra minha vontade de ficar caído e ergo mais uma vez o corpo que agora parecia ter cem vezes o peso de antes. Cambaleio na direção da porta que parecia estar a quilômetros de distância. Seria mais fácil se Lóki não ficasse tagarelando o tempo todo. A explosão. Tenho de agir rápido. A polícia já devia ter sido contatada. Demoraria a chegar naquele local, mas chegaria. Agir rápido. Bem mais fácil falar do que fazer. Finalmente cruzo o batente da porta destruída e adentro no aposento iluminado. Me surpreendo e rio ao ver o que havia nele. Várias e várias estantes repletas de livros. Começo a tirá-los do lugar, para vê-los. Líber Fulvarum Paginarium, Warlock’s Grimoire, As Coletâneas de Meinhard, De Vermis Mysteriis... Livros e mais livros, vários tomos e pastas cheias de papéis repletos de conhecimento a ser aprendido. Mas era muito mais do que eu poderia carregar.

“Malas. Onde vocês guardam malas?” Pergunto ao homem caído no chão.

“No armário. No quarto. A porta no fim do corredor”. Ele responde, temeroso.

Caminho por todo o corredor novamente e abro a porta. Um bonito quarto com uma cama de casal que parecia extremamente confortável. Me foco em meu objetivo. Vou até o armário e procuro, até encontrar duas malas. Terão de servir. Volto até a biblioteca a tempo de ver Lóki, com seu sorriso sádico, sobrevoando o prisioneiro.

“Saia de perto dele”.

Ele resmunga e pousa sobre uma mesa onde havia dois livros abertos. Começo a encher as malas com vários quilos de conhecimento e logo estão abarrotadas. Estou cansado demais para carrega-las. Vou novamente até o quarto, tiro o sobretudo e a camiseta e me olho no espelho. Havia sangue em meu rosto, além da terrível queimadura em meu peito. Me viro de costas e fito os símbolos desenhados em minhas costas. Dois deles já borrados demais para serem reutilizados. Invoco novos tentáculos. Com eles, carrego as pesadas malas escada abaixo e saio da casa. Meu estômago se revira ao ver o homem desmaiado no chão do alpendre com a carne do rosto exposta após servir de banquete de diabrete. Apanho seu molho de chaves e aperto o botão para desativar o alarme, descobrindo qual carro deveria usar. Guardo as malas e volto à casa. Apago a luz da biblioteca e levanto o único homem ainda consciente, para fazer perguntas.

“A quem vocês servem?”

“Você invadiu nossa sede sem nem saber a quem servimos?”

“Apenas responda. Não me obrigue a perguntar de novo”.

“Você é o demônio de sombras que atacou o Carlos, não é? O desgraçado nos comprometeu”.

“Eu faço as perguntas aqui”. Digo-lhe socando seu rosto. Assim que o toco, elas surgem novamente. Dançando em minha mente, tomando minha visão. Vejo a porta embaixo da escada. Vejo uma sala escura com velas e símbolos místicos. Vejo-o matando pessoas no centro do círculo, enquanto outras se reuniam em torno deste. Uma, duas, dez, várias vítimas sacrificadas em rituais profanos em troca de poder. Volto a mim. Ele cospe sangue.

“A quem vocês servem e por quê?”

“Servimos aos Sete Pecados. Servimos em troca do que eles nos oferecem. Poder, riquezas, conforto, prazer... Se quiser, pode se juntar a nós. É uma boa troca”. Eu o jogo no chão, com nojo da criatura imunda que ele era.

Por mais cansado e dolorido que estivesse, tinha de terminar o que havia começado. Pego o fuzil, desço as escadas e fito a porta que imaginei dar acesso a um pequeno armário. Uso as últimas balas da pistola para atirar no trinco e chuto a porta descobrindo exatamente o que eu havia imaginado. Um pequeno armário. Vazio. Porque trancar um armário vazio? Bato no chão do mesmo. Oco.

Disparo com o fuzil, abrindo vários buracos no alçapão disfarçado. Chuto-o, terminando de quebra-lo e vejo escadas descendo para um sub-solo secreto. Algo como uma masmorra ou um calabouço. Desço-as e encontro três portas. Duas delas normais, a terceira parecia mais forte. Abro a primeira. Uma despensa, com velas, gizes, cordas, gatos em gaiolas... Quando abro a segunda, percebo ser um local diferente. Uma sala escura, com um grande círculo entalhado no chão. O local dos sacrifícios e rituais. Até o ar do local era diferente. Parecia carregado de dor, ódio e sofrimento. Era o aposento mais escuro da casa. O mais assustador. Mas o principal é que, para mim, parecia o mais aconchegante. Fecho a porta.

A terceira porta, como havia imaginado, estava trancada. Atiro no trinco e arrombo-a apenas para sentir mais nojo dos homens que deixei nos andares de cima. Três homens encolhidos e assustados, vestindo trapos. Uma sala com isolamento acústico para que os gritos dos prisioneiros não pudessem ser ouvidos. Um local para estocar futuras vítimas de sacrifícios humanos. Eu tento acalma-los, mas eles se assustam com minha voz, então uso o medo para guia-los. Eles me acompanham até o carro. Espero me lembrar como dirigir. Abro o portão eletrônico com o controle remoto dentro do porta-luvas e volto para minha casa. No meio do caminho, devolvo os três prisioneiros às ruas.

Usando os tentáculos, salto as grades do prédio e levo as malas até o elevador. O porteiro, sonolento e distraído, nem me percebe. Entro em casa sem fazer barulho e guardo as malas em meu quarto. Limpo o sangue em mim, visto outra camiseta e volto até o carro, para me livrar dele. Espero não ter deixado pistas. Dirijo até o centro da cidade e largo-o lá, para a felicidade do ladrão que o encontrar primeiro. Pego o ônibus de volta para casa. Entro mais uma vez incógnito em meu prédio, desta vez usando os tentáculos para escalar até meu quarto. Vou ao banheiro, passo no peito uma pomada contra queimaduras e volto para meu quarto. Tranco minha porta e desabo na cama. Missão cumprida. Durmo o sono dos justos.

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Quando me capturaram, pensei que estava perdido. Disseram que minha luxúria seria minha perdição. Pensei que me fariam de mulherzinha e depois me matariam. Eu tive medo. O tempo foi passando, preso com outros três caras que eu não fazia idéia de quem eram. Provavelmente, perdidos como eu. Nos davam comida, água e penicos e nos deixaram presos naquele cubículo quente e fedorento. Nenhuma luz e nenhum som chegavam ali. Certo dia, ou noite, não dava pra saber, levaram um dos caras. Ele gritou e chorou, mas não adiantou. Deviam ser justiceiros. Não pareciam policiais. Não falavam muito. Policiais gostam de falar. Mais algum tempo se passou até que a porta se abriu novamente. Nos apavoramos, imaginando quem seria levado. Nos apavoramos mais ainda porque não havia nenhuma luz, nem a fraca luz das velas que portavam da última vez. E a porta tinha sido aberta com força. Quando ouvi aquela voz, tive certeza que era o diabo. Ele tentava nos acalmar, mas não é fácil manter a calma em uma situação daquelas. Principalmente quando o diabo em pessoa ‘aparece’ pra você. Ele não apareceu de verdade, porque estava muito escuro pra ver, mas sabíamos que ele estava lá. E a voz era inconfundível. Gente não falava daquele jeito. Só podia ser o diabo.

Ele nos amedrontou, nos ameaçou e nos ordenou. Não havia um que seria levado, ele queria os três ao mesmo tempo. E queria que fôssemos por nós mesmos. Fomos tateando no escuro, subimos escadas, até que saímos de uma casa. Estava de noite. Eu pude ver o céu e as estrelas novamente. E também vi a silhueta do diabo. Percebi os chifres apontando para baixo e suas asas, que estavam fechadas sobre o corpo, balançando com o vento. Nos mandou entrar em um carro e ele mesmo foi dirigir. O diabo era nosso motorista! E dirigia mal pra caramba. Então ele parou o carro e nos mandou descer. Disse que estávamos livres. O próprio diabo salvou a gente! Quando o próprio diabo intercede por você, a certeza de que você é um perdido é completa. Não há mais volta. A certeza de que Deus lhe virou as costas se confirma. Então, que se dane. Depois de tanto tempo sem uma mulher, eu sabia o que queria. E encontrei. Como das outras vezes, aquela também gritou e lutou. Eu adoro quando elas fazem isso...
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:12

Parte 33: Calmaria

Ele despertou com a claridade que já tomava seu quarto e resolveu se levantar. A garota com quem passara a noite ainda dormia, então resolveu não incomoda-la. Vestiu uma bermuda e foi até o quarto ao lado, fazer seus exercícios matinais. Depois se dirigiu até a cozinha, para apanhar um copo de leite. Por fim, seguiu até a sala onde encontrou o enorme cão negro dinamarquês que, no momento, estava deitado e parecia ler um jornal espalhado pelo chão.

“Bom dia, Cérbero”. Ceifador o cumprimentou com sua voz grave e poderosa.

“Bom dia. Dê uma olhada na secretária. Vamos ter que viajar”. Respondeu o cachorro, que falava fluentemente com uma voz quase tão assustadora quanto à do enorme homem negro à sua frente, que colocava a secretária eletrônica para tocar a mensagem.

“Ceifador, a sede da Irmandade, em Goiânia, foi invadida. Acreditamos que tenha sido algum tipo de criatura interessada em conhecimentos místicos, pois, de acordo com os relatos que recebemos, ela pareceu centrada apenas em roubar alguns livros. Para isso, devorou o rosto do vigia, derrotou o assassino da sede e nocauteou o mestre de cerimônias, mas deixou todos vivos. Os sacrifícios humanos que haviam estocado desapareceram. O local já foi abandonado e os procedimentos padrões já foram seguidos. Estão esperando por você para a retaliação”.

“Que tipo de criatura deixa um assassino vivo?” Perguntou para si mesmo após o fim da mensagem.

“Descobrir isso costuma ser seu trabalho”. Respondeu o sinistro cachorro falante, enquanto se levantava.

“Não, isso é meu hobby. Matar é meu trabalho. Tenho um almoço marcado com um pessoal da Prosperidade Negra e uns assuntos a tratar na sede. Partiremos em torno de cinco da tarde. Esteja pronto”.

“Não sou eu quem precisa arrumar malas”.

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“Aleluia! Finalmente amanheceu na sua cama, hein?” Luna disse depois que saí ainda sonolento do quarto.

“Já estamos almoçando, meu filho. Se arruma rapidinho e vem comer com a gente”.

“Ta”. Respondo semi-acordado como se ainda estivesse na cama e entro no banheiro. Tiro a camiseta e vejo a queimadura em forma de círculo em meu peito. Vai ficar uma cicatriz horrorosa. Lembro da bola de fogo que me atingiu. Não era fogo normal. Não como as esferas flamejantes que Roxane usara contra o vampiro assassino. Era um fogo estranho. Brilhava intensamente em dourado e vermelho. Antes de me atingir, ainda destruiu dois de meus tentáculos. Passo novamente a pomada contra queimaduras e enrolo algumas bandagens para não ficar grudando na camiseta. Felizmente, poderia dar um tempo em minhas andanças noturnas. Já tinha muito material para estudo embaixo da cama. Escovo os dentes, lavo o rosto e vou para a mesa. “Oba, adoro almoço no café da manhã”.

“O Diego te ligou, mais cedo”.

“O que ele queria?” Pergunto já imaginando um jogador a menos na sessão de RPG. E o pior é que hoje o jogo seria na casa dele.

“Pediu pra te avisar que hoje o jogo vai ser na casa do Cláudio, não na dele, porque a Bárbara amanheceu doente”.

“Tudo bem, um mora perto do outro mesmo. O que ela tem?”

“Ele disse que ela amanheceu com fraqueza”.

“Deve ser anemia. Ele é meio enjoadinha pra comer, não é Athos?”

“Sei lá, mãe. Acho que não”.

“Eu lembro da Ana Paula reclamar que era difícil faze-la comer. Já o Diego sempre foi bom de garfo. Por isso que cresceu rápido. Acho que ele já está da altura que o pai dele tinha. Você sabe quanto ele ta medindo?”

“Entre 1,80m e 185m. Mas ele cresceu porque os genes mandaram. Não foi a comida”.

“Mas a comida influencia, sim. Tem que ter energia pro corpo poder crescer. Você não ficou tão alto porque não come direito”.

“1,75m é uma boa altura, mãe. Eu não quero ser jogador de basquete. E eu como direito, sim”.

“Outro que não come direito é o Luke. Eu coloquei leite pra ele hoje de manhã e até agora ele não bebeu nada”.

“O nome dele é Lóki, mãe”.

“Talvez ele estava esperando a gente almoçar, pra poder comer com a gente, mãe”.

“Vamos ver se ele come pelo menos a carne, né?”

“Você colocou carne pra ele?”

“Coloquei, por quê?”

“Crua?”

“Não. Preparei com molho de rato, hehehe. Claro que foi crua”.

“Ah, então ele deve comer, com certeza”. Termino de almoçar e esvazio a tigela de leite sem que me vejam. Depois arrumo minha cama, de forma que as malas embaixo dela fiquem escondidas. Troco de roupa e saio na direção do ponto de ônibus. Antes de chegar, paro em um orelhão para uma denúncia anônima sobre o pessoal com quem estive na noite passada. Não sei se a polícia vai fazer alguma coisa ou se eles conseguirão se livrar dela, mas não custa nada tentar. Pego o ônibus e me dirijo à casa do Cláudio.


A batalha havia sido árdua e demorada. Alguns heróis haviam chegado perto da morte e trazidos de volta ao combate. O dragão se mostrava um adversário fabuloso, mas, felizmente, não invencível. Com sua mente prodigiosa, analisava a situação e percebia que não conseguiria vencer os bravos humanóides que invadiram seu covil. Recuaria hoje para buscar vingança futuramente. Se virou e correu velozmente sobre suas quatro patas, saindo por um grande corredor de pedras ao fundo da caverna.

“Não podemos permitir sua fuga! Mais inocentes serão vítimas de sua crueldade se o deixarmos partir!” Disse o elfo, já ferido e cansado, mas sempre exibindo o porte majestoso de um rei. Ele sabia que suas pequenas pernas não alcançariam o grande dragão então invocou, dos planos celestiais onde residia sua deusa, uma montaria veloz e incansável. Um cavalo tão branco que seu pêlo parecia ter luz própria surgira já a galope ao seu lado e em um salto, montara para perseguir sua gigantesca presa.

“E como diabos vamos perseguir a porra daquele bicho?!” Gritou o anão em resposta. Tinha tantos ferimentos e tantas cicatrizes que, qualquer um em seu lugar já estaria morto. Mas não ele. Se dava ao luxo de estar frustrado pela desistência da criatura e término da luta. Fúria e violência corriam em suas veias, no lugar de sangue.

“Creio que posso resolver isso, caro amigo. Ouça-me...” Disse o homem de mantos ao seu lado. Apesar de ter alguns ferimentos, seu maior cansaço era mental, não físico. Sua cabeça latejava com o esforço psíquico que a arte da magia exigia, mas ele perseverava, vencendo seus próprios limites e expondo um rápido plano de ação ao seu companheiro bárbaro.

O dragão chegara a uma nova câmara, cujo teto inexistia, tendo uma saída aérea no alto da montanha onde firmara seu covil. Abriu asas e alçou vôo, enquanto planejava vingança contra os malditos bípedes que ousaram lhe humilhar daquela forma. O guerreiro divino chegara logo atrás, apenas para ver seu alvo partindo fora de seu alcance. Foi então que uma luz piscara trazendo seus companheiros, o mago e o anão, através de uma magia de teletransporte que havia sido preparada para casos de emergência, como uma fuga. Só não imaginara que a fuga em questão seria do adversário.

“Pule no machado!” Gritou o mago, apontando a lateral da arma empunhada pelo brutal anão. O elfo entendera. Seu cavalo galopou na direção dos dois e, da mesma forma que surgira, desapareceu, voltando aos planos celestiais no exato momento em que o elfo saltara na direção da larga lâmina de seu amigo que absorvera o impacto e o arremessara para o alto na direção do dragão. Tal atitude impensada nunca funcionaria, mas o criador do plano tinha uma carta na manga e conjurara sobre o elfo uma magia para aumentar o impulso de seu salto a níveis estratosféricos. Como uma flecha, o corpo do elfo subiu na direção do dragão. Colocando sua espada na frente do corpo, ele cortara o ar rapidamente, enquanto uma luz azulada se formava sobre a lâmina na medida em que ele recitava a prece aprendida durante seu treinamento, para usá-la sempre que fosse necessária a morte de uma criatura notavelmente maligna.

“Que a mão de minha deusa guie minha espada para que o mal que não pode se redimir, seja destruído!” E como uma flecha, ele atravessou o corpo do dragão, emergindo todo sujo pelo sangue da poderosa criatura que mal entendera o que se passava. O gigantesco réptil mágico interrompia sua ascensão e iniciava sua queda. O barulho de seu impacto com o chão ecoara por todo o complexo de cavernas que havia abaixo daquela montanha. No rosto dos heróis, uma expressão que só podia significar uma coisa: Vitória.


“Cadê a merda daquela ladra inútil?” Perguntou Cláudio, ao perceber que Ellen apenas assistia o desenvolver da perseguição, sem se meter.

“O dragão tem um tesouro, não tem? Onde você acha que uma ladra vai estar?” Ela responde, sorrindo.

“A filha da mãe vai roubar a gente!”

“Calma, Cláudio. Vocês três podiam ir lá pro quarto, enquanto eu narro a parte da Ellen em segredo”. Disse Bruno, deixando Cláudio ainda mais frustrado. Nos dirigimos até o quarto.

“Tomara que ela caia em alguma armadilha. Vou achar é bom, pra largar de bancar a esperta”.

“Do jeito que ela é boa com armadilhas, duvido. Mas fica frio, meu elfo é um guerreiro divino, ele sabe detectar mentiras. Se ela mentir pra gente, eu vou descobrir”.

“E, mesmo que não soubesse, do jeito que você é sortudo com rolagens de dados, aposto que ainda conseguiria”.

“Pode crer. E a Bárbara, como ela está?”

“Acordou toda mole. Estava fraca, sem ânimo... O Alfredo pediu pro irmão dele, que é médico, pra dar uma passada lá em casa pra ver o que é”.

“Não deve ser nada grave”. Digo, fazendo minha parte para tranqüilizar Diego. Ele e Bárbara não eram irmãos de sangue, mas viviam juntos a tempo suficiente para que isso não fosse um problema. Há mais de cinco anos, sua mãe conhecera Alfredo e estão juntos desde então.

“É, tomara”.

“Podem vir”. Gritou Bruno, nos chamando de volta à sala. Passamos o resto da tarde nos divertindo com as peculiaridades de nosso divertido jogo de interpretação. Porém, às sete terminamos a sessão. Ainda precisava me encontrar com Roxane naquela noite. Nos despedimos e volto pra casa para me arrumar. Antes de sair para o shopping, escolho dois livros de uma das malas e levo-os.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:13

Parte 34: Dois Lados

Chegamos na cidade em torno das nove horas da noite. Liguei para Fernando, um dos representantes da Irmandade em Goiânia, e combinamos de nos encontrar na Praça Cívica, no centro da cidade. Ele entrou no carro e partimos, com ele me guiando até um bom restaurante, não muito distante do apartamento que preparara para minha estadia. A presença de Cérbero desagradou explicitamente algumas pessoas e o garçom me chamou a atenção, mas eu o convenci a não mais nos importunar, principalmente após fazer um enorme pedido explicando que meu cachorro também jantaria comigo.

“Então o Marcelo foi derrotado pela criatura que invadiu a sede? Hehe, quero vê-lo. Não deve estar aceitando bem isso”.

“O Carrasco? Ele disse que quase a derrotou. Disse que dominou o combate até o fim. A coisa já estava ferida, mas deu sorte em pega-lo desprevenido no último momento”.

“Sei...”

“Antônio confirmou a história de que a criatura estava ferida. Se tivesse mais um ou dois caras na casa, talvez tivessem conseguido pega-la”.

“Pensei que seria algo mais desafiador. E quanto a sede?”

“Abandonamos, né? Procedimentos padrões. Vai levar bastante tempo até conseguirmos outra. Mas quem levou a pior foi o coitado do João, o vigia”. Por um instante me concentro nele, ao ouvir o mesmo nome do homem que se infiltrou na Irmandade, em São Paulo, e que morrera por minhas mãos na noite anterior.

“Me falaram que a criatura devorou o rosto dele”.

“Isso mesmo, coitado. Foi jogado na parede e, quando acordou, estava sem cara. Ta todo desfigurado. No hospital, dissemos que foi um cachorro. Ele ta puto. Vamos providenciar um Encontro pra ele. Assim ele pode pedir o rosto de volta. Acho que vai pedir vingança também, mas isso é o seu departamento, não o d’Eles”.

“Se Eles quiserem, podem se vingar por ele”.

“Hehe, com certeza. Mas Eles têm você pra isso”.

“Sim, Eles me têm pra isso”.

O jantar nos é servido. Trazem até uma grande tigela para Cérbero. Estão sendo muito bem pagos por toda a comida que pedi e, por isso, nos tratam tão bem. Depois de comer, vamos até o prédio onde ficarei. Me despeço de Fernando e subo para descansar da viagem e me preparar para o dia seguinte, quando começaria a caçar a criatura insolente que desafiara a Irmandade. Ao entrar no apartamento, percebo barulhos vindo de seu interior. Uma bela mulher de cabelos negros lisos e compridos assistia televisão, vestindo uma blusinha rosa e mini-saia jeans, exibindo longas e belas pernas.

“Você é o Ceifador, não é? Impossível não reconhece-lo”. Ela disse, se levantando para me cumprimentar.

“E você, quem é?”

“Meu nome é Márcia. Fernando disse que você poderia querer companhia. A Irmandade quer que você tenha uma boa estadia enquanto estiver em nossa cidade”. Ela disse sorrindo de forma lasciva.

“O desejo da Irmandade é o meu desejo, Márcia”. Retribuo o sorriso.

------------------------------------------------------------------

Chego ao shopping no horário combinado e a encontro sentada em uma mesa da praça de alimentação. Vestia uma camiseta preta e saia jeans. Roxane. Era uma garota bonita. Parecia mais uma garota normal, como as várias que infestavam o shopping, mas eu sabia que ela estava longe de ser normal. Não são muitas as pessoas que conseguem conjurar fogo magicamente. Me aproximo.

“Olá”.

“Oi, Athos”. Ela diz abrindo um sorriso e se levantando para me abraçar.

“Demorei muito?”

“Não, acabei de chegar”.

“Que bom. Aceita um milkshake?”

“Claro”.

“Ótimo. Dá uma olhada nesses livros. Eu já volto”.

Deixo-a vendo dois dos livros que roubei dos tais servos dos pecados enquanto entro na fila para comprar os milkshakes. Adoro essa porcaria. Vir ao shopping e não comprar um desses é o mesmo que não vir. Volto à mesa.

“Onde você conseguiu isso?”

“Sinceramente? Eu roubei. E tem bem mais de onde vieram esses. Ainda não dei uma olhada direito, mas tenho uns em latim, outros em inglês, outros em línguas que eu nem sei quais são... Você tem mais experiência com isso, então pensei que poderia me ajudar”.

“Não fui eu quem lutou com um vampiro”.

“O ‘isso’ que eu disse significava ‘roubar livros e aprender coisas secretamente com eles’. Como não moramos muito longe um do outro, acho que podemos marcar uns dias pra estudar juntos, depois do colégio. Se me ajudar, posso te dar alguns livros pra você montar sua própria biblioteca ou fazer uma média com seu pai pra ele permitir que você freqüente a Ordem do Bolinha”.

“É uma proposta tentadora”.

“E o que me diz?”

“Passar algum tempo em boa companhia, tendo acesso a conhecimentos secretos e até ganhar alguns livros para fazer média com meu pai... É, parece bom. Mas tenho uma condição”. Ela disse, enquanto se levantava e começava a caminhar na direção da escada rolante que levava ao andar inferior. Acompanho-a.

“Diga”.

“Você vai me contar como e de onde roubou esses livros. E também vai tentar me explicar como você aprendeu a fazer aquilo que fez com o vampiro. Aquela magia com sombras”.

“E se o que eu disser for irreal ou terrível? Algo como eu ser o último sobrevivente de uma raça de pessoas que manipulam sombras ou algo que envolva o sacrifício da minha avó para absorver o poder dela? Você vai desistir?”

“Prometo que não desisto, se você prometer que vai falar a verdade”.

“Certo. Mas primeiro, vamos sair daqui. Está muito movimentado”.

“Ok. Ah, prometa também que não vai me sacrificar”. Ela diz sorrindo.

“Ah, droga. Pensei que ia esquecer dessa parte”. Respondo retribuindo o sorriso, enquanto rumamos para a saída do shopping.

“E quanto aos machucados? Quando saiu lá de casa você tinha um monte de cortes pelo corpo. Como estão?”

“Pois é, como disse, já estão ótimos. Meu maior problema são os machucados que eu ganhei quando fui roubar os livros”.

“Como assim?”

“Vamos nos sentar num canto ali no Vaca Brava que eu te conto a história toda”. Digo apontando o parque do outro lado da rua, de frente para o shopping. Algumas pessoas caminhavam em volta dele, enquanto outras se acomodavam na grama para passar o tempo. O porco lago do parque refletia a lua minguante no céu. Parque Vaca Brava. Certa vez definido como uma grande área verde, onde os caras que se vestem de preto, bebem um tinto e ouvem um blues. Escolhemos um local e nos sentamos.

“Está pronta?”

“Claro”.

“Então lá vai: Eu sou o Anticristo”.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:13

Parte 35: Confidências

Explico melhor o que quis dizer sobre eu ser o Anticristo. Conto sobre a visita de Khestalus, sobre eu ser o filho de um demônio, sobre o poder oferecido por meu suposto pai verdadeiro, apesar de guardar para mim o segredo de que tal poder vem do anel, sobre minha busca por provas e mais respostas, terminando na invasão da casa e roubo dos livros. Ela ouve tudo atentamente, sem me interromper. Sua boca se entreabre de espanto. Quando finalmente termino, ela se manifesta.

“É inacreditável. Eu já tinha lido sobre Nephalins, lendas sobre filhos de humanas com entidades espirituais, mas nunca pensei que conheceria um”.

“Muito prazer”.

“Quero dizer, sempre pensei que fossem apenas lendas, mesmo. Entidades espirituais não têm filhos. É algo bem lógico e intuitivo. Nossa, agora posso imaginar a sua confusão. Você foi meio que jogado em um mundo novo de uma hora pra outra. E você conversou com um demônio. Incrível”.

“É. Incrível, mesmo. Quase inacreditável, mas é a verdade”.

“Posso ver a queimadura?”

“Está bem feia”.

“Não faz mal”.

Eu tiro a camiseta e as bandagens, deixando meu peito nu e expondo o horrível ferimento. Ela passa a mão em volta da queimadura. E depois vai analisando o resto de meu corpo à procura de sinais e cicatrizes deixados pelos inúmeros cortes provocados pelo vampiro assassino.

“Nossa... Nenhuma cicatriz”.

“Mas em compensação, essa queimadura vai deixar uma cicatriz que vale por todas as outras que não apareceram”.

“Ou talvez não. Quero dizer, acho que posso te ajudar com essa queimadura”.

“Como?”

“Depois daquele dia com o vampiro, comecei a procurar um rito que pudesse ajudar com ferimentos. Pesquisei em algumas anotações do meu pai e do Pedro, levei algum tempo, mas encontrei um rito que pode funcionar”.

“Tipo o que seu pai fez com a minha perna?!”

“Eu não sou meu pai”. Ela diz, tirando uma folha de papel dobrada de dentro do bolso de trás da saia. Ao desdobrá-la, vejo que está toda escrita e desenhada.

“Esse rito pode aumentar a velocidade e eficiência da sua recuperação. Algo como, se demoraria um mês e deixaria uma grande cicatriz, o tempo se reduz a quinze ou vinte dias e a cicatriz não fica tão grande. Ainda não testei, pois não dá pra usar em mim mesma, mas acho que pode dar certo. Posso tentar?”

“Por favor”. Ela tira do bolso uma caneta e me entrega, juntamente com a folha dobrada, me mostrando um círculo com alguns símbolos.

“Preciso que você desenhe isso na minha mão. Espera um pouco”. Ela diz, caminhando até um vendedor e voltando com uma garrafa de água mineral. Após abrir a tampa, despeja o conteúdo em suas mãos, lavando-as.

“Pronto, pode desenhar”. Eu procuro copiar fielmente cada símbolo na palma de sua mão molhada, tendo certa dificuldade para fazer a caneta funcionar em sua pele. Após alguns minutos, eu termino. Ela aprova o desenho e joga mais um pouco de água sobre ele.

“O nome do rito é O Sopro da Vida. Eu preciso fazer uma oração, então fique quieto e não me interrompa, ok?”

“Ok”. Ela começa a ler a oração, se concentrando. Sua mão livre permanece aberta, com os dedos unidos, com a palma virada em minha direção. Ela repete a oração algumas vezes, buscando se concentrar e executar o rito corretamente. Por fim, ela leva sua mão até minha queimadura e a pressiona, fazendo-a arder levemente. Após terminar a oração, com os olhos ainda fechados, seu rosto se aproxima do meu até que sua boca toca a minha. Ela assopra. Um sopro quente e gostoso que espalha calor por todo meu corpo e me faz esquecer tanto o ardor da queimadura quanto o frio da noite. Meu peito, sob sua mão, começa a formigar. Então, sinto-a mordiscar meus lábios. Nos beijamos. Ela se afasta sorrindo e desvia o olhar dos meus olhos para meu peito.

“Já reparou que sempre que nos encontramos, você acaba sem camisa?” Eu olho para onde antes existia uma enorme e terrível queimadura e me espanto ao ver um ferimento com pouco mais da metade do tamanho e gravidade que há pouco havia.

“Caramba! Não pensei que fosse tão eficiente”.

“Eu também não. Acho que nem devia ser. Parece que ter sangue de demônio tem suas vantagens. Quero dizer, normalmente seres sobrenaturais se recuperam de ferimentos rapidamente. Você deve ter herdado um pouco dessa capacidade e o rito deve tê-la ampliado”.

“É... Valeu. Hã... Roxane, eu preciso te perguntar uma coisa”.

“Vá em frente”.

“O beijo. Fazia parte do rito?”

“Não... Só o sopro. Por quê?” Ela pergunta, com o sorriso minguando, como a lua no céu.

“Bem, Roxane... É que, tipo... Eu tenho namorada”. Digo, mostrando a aliança.

“Ah... Tudo bem, Athos. Sabe como é, já estávamos lá mesmo. Eu... Desculpa. Bem, é melhor eu ir andando. Não quero chegar muito tarde em casa”.

“Hã... Certo. Nos vemos amanhã?”

“Talvez. Tchau”.

“Tchau”. Ela caminha em direção ao ponto. Despediu-se ali, mesmo sabendo que pegamos o mesmo ônibus para voltarmos pra casa. Ficou sem graça e com razão. Achou que estava rolando um clima, com toda essa troca de segredos e coisas em comum. Droga, mas é claro que estava rolando um clima! Por mais sutil que fosse, mas estava. Eu flertei, ela flertou. A culpa é minha, não dela! Visto minha camiseta e me deito na grama, olhando para a lua. Preciso falar com ela, amanhã.

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A garotinha já dormia profundamente. Dez anos de idade. Uma princesinha. E agora estava doente. Ele a examinara e pedira exames de sangue. Aquela fraqueza poderia ser anemia. Criança adora comer porcaria e deixar de lado os alimentos adequados. Saíra mais cedo do plantão, a pedido do irmão, pois sua sobrinha havia amanhecido doente. Ele conversara bastante com o irmão, Alfredo, que se demonstrava preocupado, como sempre. Diego, o enteado de Alfredo, assistia televisão. Dezessete anos. Mais ou menos a idade que seu filho teria. Ana Paula, a cunhada, arrumava a cozinha, após o jantar. Ela o fazia lembrar de sua esposa. Pensou melhor e chegou à conclusão de que, na verdade, tudo o fazia lembrar de sua esposa. Alfredo falava em seguir em frente, não se deixar derrotar, que o tempo já devia ter curado aquela ferida, mas não passara pelo que ele passou.

Alfredo não falhara no único momento de sua vida em que não podia falhar. Além de não ter sido responsável pelo que ocorrera com sua ex-mulher, ainda tinha a pequena Bárbara que precisava dele. Alfredo era um sortudo. Já ele, estava só, porém, por mais que não parecesse, seguia em frente, mas a sua própria maneira. A maneira que encontrou para fazê-lo. O irmão devia achar que ele ainda estava bebendo, devido a seus sumiços noturnos. Se soubesse o que realmente fazia, imploraria para que parasse e voltasse a beber. O álcool era bem menos perigoso. Se despediu, dizendo para não esquecerem de fazer os exames e seguiu para casa. Depois de tomar um banho e jantar, apanhou a Mão de Deus, convocou os Anjos e saiu novamente. Estava seguindo em frente, mas a sua própria maneira. A maneira que Deus lhe mostrou para fazê-lo.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:14

Parte 36: Ceifador

Pela manhã, seguimos até um outro apartamento, onde nos encontraríamos com os outros e eu começaria minha investigação. Márcia me guiava até o local. Era uma verdadeira filha da mestra Lillith. Bela, sensual, sedutora e perigosa. As bênçãos da luxúria exalavam de seu corpo, assim como o orgulho que tinha de si mesma. Era uma mulher incrível. Chegamos ao local e subimos pelo elevador. Fernando já nos esperava, assim como Antônio, o mestre de cerimônias, e Marcelo, o assassino denominado Carrasco.

“Bom dia”. Cumprimento a todos. Fernando e Antônio já passavam dos quarenta anos, ambos vestindo camisas sociais de cores claras com calças escuras. O primeiro era bem apessoado, responsável por relações com outras pessoas, como o recrutamento de novos membros e coordenação do pessoal da seita, para aumentar a influência da mesma. Já Antônio começava a ficar careca e usava óculos, além de estar com o rosto roxo, como se tivesse levado alguns socos. Marcelo, assim como eu, tinha pouco mais de trinta anos, com um corpo forte e trabalhado. Vestia calças jeans, camiseta preta e óculos escuros. Sua mão direita estava enfaixada e seu rosto mostrava que não estava contente em me ver.

“Bom dia. E esperamos que tenha tido uma boa noite, também”. Disse Fernando, sorrindo.

“Foi bastante agradável”. Digo olhando para Márcia que se dirigia até o barzinho com seu sensual caminhar, atraindo os olhares de todos no recinto.

“Tenho certeza que sim. Então é hora de trabalharmos”.

“Certo. Primeiramente, contem-me exatamente o que aconteceu”. Fernando foi o primeiro a falar, contando o que foi relatado pelo vigia, João. Disse que a criatura parecia ter saído das sombras e que se desviou de seus disparos e nocalteou-o. Márcia serviu drinques para cada um de nós, enquanto Marcelo começava sua narrativa dizendo que atirou fazendo-a recuar. Para evitar qualquer proteção que ela tivesse, usou um feitiço para conjurar fogo infernal sobre a criatura, abrindo caminho para as balas que viriam. Seu plano, porém, não funcionou, pois logo depois a criatura atirara em sua mão, destruindo sua pistola. Ele ainda a imobilizara e tentara quebrar seu pescoço, mas ela o pegara pelas costas, usando um apêndice que parecia um tentáculo, cujo toque era tão frio que queimava. O último a falar foi Antônio. Como a criatura vencera o lacre que havia colocado na casa, foi rápido em ativar uma armadilha na porta da biblioteca. Quando a criatura tocou a maçaneta, a explosão jogou-a longe. Ele foi até ela, armado com o fuzil, para ter certeza de que a mataria, mas se distraiu com a chegada inesperada de um diabrete que parecia estar acompanhando o invasor. Essa distração foi o bastante para que a criatura conseguisse atirar nele. Se não tivesse vestido o colete, talvez estivesse morto agora. Ele mal se protegeu dos tiros e já foi agarrado por tentáculos negros que o desarmaram e o imobilizaram. Foi então que a criatura falou com ele. Por mais tenebrosa que fosse sua voz, ele percebera cansaço e dor nela. Pediu por malas, onde colocou vários livros e saiu. Antônio disse que ficara ali, preso, por mais algum tempo, enquanto ouvia a criatura invadindo o sub-solo e saindo com os condenados.

“Que tipo de diabrete?”

“O tipo mais comum, mesmo. Um Imp. Pequenino e voador. Mas este tinha olhos vermelhos e brilhantes”.

“A criatura deixou alguma coisa?”

“Isto”. Marcelo diz me mostrando um saco plástico de coleta de evidências com um pedaço de tecido preto em formato triangular dentro. “Acho que foi quando tentei degolá-lo”.

“Parece um pedaço de lenço. Você disse que cortou isso quando tentou degola-lo? Quando o atacou na altura do pescoço?” Digo colocando a pista abaixo de meu queixo, próximo de onde ela deveria estar antes de ser cortada. “O invasor usava um lenço preto sobre o rosto. Por proteção ou teatralidade, não sei dizer. Antônio disse que ele tinha um diabrete com olhos vermelhos e brilhantes. Graças às bênçãos dos Pecados, eu e Marcelo temos olhos com esta mesma descrição, quando queremos ver no escuro. Isso significa que nosso invasor possui um ou mais mestres infernais. Talvez isso tenha relação com a forma que usou para encontrar a sede. Quanto à sua natureza, não posso afirmar nada. Alguém conhece algo que deixa inimigos vivos após derrotá-los?”

Silêncio total, enquanto todos se entreolhavam, esperando alguma resposta. “Humanos”. Márcia arrisca, fazendo-nos olhar em sua direção. Era uma mulher realmente incrível.


Humanos. A resposta poderia ser esta. Se Márcia dissesse ‘Pessoas’ ou ‘Mortais’, não significaria nada, mas ‘Humanos’ tinha um significado bem maior. O que deixa inimigos vivos após derrotá-los? Alguém que esteja apegado a sua humanidade. Alguém que valorize a vida alheia e evite matar. Era uma pista. O vigia teve seu rosto devorado, provavelmente vítima do diabrete, não do verdadeiro invasor. Também não descartei a hipótese de ser tudo um plano para nos observar, apesar de achar um tanto improvável. Fernando e Márcia vão embora, tendo outros assuntos a tratar. Eu, Antônio, Marcelo e Cérbero ficamos para resolver o caso, porém, as pistas eram escassas, então decidi tentar um rito. Duvido que o invasor tenha alguma relação forte com o lenço que Marcelo cortara, mas eu tinha de arriscar. Preparo um ritual para observar o invasor, usando o elo que o ligava àquele pedaço de tecido como orientação. Um quarto com pesadas cortinas serve perfeitamente para sediar o ritual. Desenho o círculo no chão, coloco as velas ao redor dele e um espelho diante de mim. Espero que dê certo.

---------------------------------------------------------------------

Me levanto, após uma noite de sono normal e me arrumo para ir ao colégio. Percebo a ‘até discreta’ cicatriz da queimadura e me lembro de Roxane. Decido ir à casa dela, depois das aulas. No caminho até a escola, Luna fala sobre a estranheza de Lóki, que nunca bebe o leite na hora em que ela ou minha mãe coloca, sendo que ainda não o vira bebendo leite. Digo que alguns animais não gostam de serem vistos enquanto se alimentam e fica por isso mesmo. Consigo assistir as aulas normalmente, por pior que seja a manhã de uma segunda-feira. Desde que Khestalus surgiu para mim pela primeira vez, comecei a me desinteressar pelo colégio. E logo no meu ano de vestibular. Sinto um pouco de culpa. O sinal toca, anunciando o intervalo que também corre bem, com conversas, discussões e piadas entre colegas. Pouco antes de voltar para a sala é que ocorre algo estranho. Passei no banheiro, para urinar, e quando fui lavar as mãos, percebi pelo reflexo do espelho um enorme homem negro parado logo atrás de mim, me olhando. Era careca, alto, musculoso e vestia camiseta branca e calças jeans. Possuía tatuagens tribais pelos braços e cabeça e seus olhos eram de uma estranha cor castanho-avermelhada. Ele me fitava com uma expressão severa e, de repente, seus olhos se tornaram totalmente brancos e vazios.

Me virei rapidamente, para encara-lo, assumindo uma posição defensiva, já esperando pelo pior, mas não havia mais ninguém no banheiro. Voltei minha atenção novamente para o espelho, girei a cabeça, procurando por alguma coisa, mas estava tudo normal. O que era aquilo?! Quem era aquele cara?! O que acontecera?! Lavo as mãos e volto pra sala. Me lembro que os vampiros ainda estavam atrás de mim. O sol já estava há horas no céu e levaria ainda muitas outras horas até que ele se deitasse. Durante esse período eu era bem mais limitado, mas imaginava que meus perseguidores também fossem. Se o homem no espelho não era um vampiro, quem era? Penso na casa que invadi, de onde roubei os livros. Penso em alguma pista que eu possa ter deixado. Nada. Quem, diabos, era aquele homem?!

--------------------------------------------------------------------

“Descubram onde fica o colégio cujo emblema seja parecido com isto”. Digo entregando um desenho para Antônio e Marcelo. O rito funcionara e talvez eu possa usá-lo novamente mais tarde, caso seja necessário. Mas o mais intrigante foi ver um garoto, em minha visão. Quem seria ele? Com certeza, a pessoa com maior ligação com aquele lenço. Seja lá quem for, talvez possa nos levar ao invasor da sede. Talvez o invasor tenha lhe roubado o lenço, o que nos dá uma área menor para procurar. Tínhamos uma nova pista.

Com uma rápida pesquisa na internet, Antônio descobre o endereço do colégio e o encontra num mapa da cidade. Decido investigar o garoto, seguindo minha intuição de que ele pode ser útil. Vamos para o carro e partimos na direção apontada pelo mestre de cerimônias. Entrego o lenço para Cérbero identificar odores, caso surja a possibilidade dele seguir ou encontrar algo através do faro. Discutimos o modo de agir e dividimos tarefas. No caminho, escolhemos um restaurante para almoçarmos mais tarde.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:15

Parte 37: Investigação

Desço do carro, deixando Ceifador no mesmo, para não chamar atenção. Especialmente porque ele já havia se revelado ao garoto que ele vira no espelho e não queria ser visto novamente. Carrasco fingia passear com Cérbero, enquanto este farejava tentando encontrar alguma coisa. Por eu não ser alto e forte como eles, parecendo mais uma pessoa normal, quase um pai que pudesse estar buscando um filho no colégio, me incumbiram de levantar algumas informações sobre o rapaz. Se não fosse o próprio Avatar dos Pecados estar ali, eu nunca participaria de forma tão direta da investigação. Contataria e ordenaria outros. Afinal de contas, para que serve a hierarquia? Para que serviram todos esses anos de estudo e devoção para chegar onde eu estava? Me dirijo até um dos muitos jovens que saíam do colégio, naquele momento.

“Oi, com licença, você conhece aquele rapaz, ali?” Digo, apontando o rapaz cabeludo que se distanciava, caminhando.

“Quem?”

“Aquele ali, de cabelo grande”. Aponto-o.

“Ah, é o maluco que pulou na frente do carro”.

“Como?”

“Faz um tempo, já. Ele pulou na frente de um carro que estava passando nessa rua. Foi atropelado”.

“Atropelado? Ué, ele não parece que foi atropelado”. Digo, estranhando, afinal de contas, o garoto parecia totalmente saudável.

“Pois é, deu uma puta sorte. Acho que só quebrou o braço”.

“Mas os braços dele parecem normais”.

“Ele veio com um gesso por uns dias. Não vi quando tirou”.

“E porque ele pulou na frente do carro?”

“Não sei... ô, Nelson!” O garoto chama um amigo, para ajudá-lo com as perguntas.

“Fala”.

“Sabe o cara que pulou na frente do carro e foi atropelado?”

“Sei sim, o que tem?”

“Porque que ele pulou?”

“Ah, foi por causa da Daniele. Aquela gostosa, do terceiro ano. A de cabelo vermelho. O carro ia atropelar ela, então ele a empurrou e acabou sendo atropelado no lugar dela”.

“Que burro!”

“Quem é essa Daniele?”

“Aquela ali, ó. De cabelo vermelho”.

“Obrigado”.

Me dirijo até a garota que me apontaram. Uma jovenzinha muito atraente, com um belo rosto e um corpo invejável, como as muitas que se espalhavam pela cidade e, provavelmente, com a cabecinha tão vazia quanto a da maioria delas. Não que isto as fizesse menos úteis, claro.

----------------------------------------------------------

“Olá. Daniele, não é?” Um senhor meio careca, usando óculos e com o rosto um pouco machucado, chega até mim.

“Sim, sou eu”.

“Meu nome é Antônio. Fiquei sabendo que você quase foi atropelada há algum tempo atrás, mas foi salva por um amigo seu. É verdade?”

“É, por quê?”

“Estou colhendo fatos para uma futura reportagem sobre ‘heroísmo’ que sairá no jornal O Popular. Podemos conversar por um instante?”

“Claro”. Nem acreditei naquilo. Eu em uma reportagem! Mas não deixei transparecer a euforia, pra não faze-lo se desinteressar com meu amadorismo. Apenas sorri e mexi um pouco no cabelo, ao responder. Vai que ele me indica pra Garota da Semana.

“Você se lembra quando foi que aconteceu?”

“Deixa eu ver... Acho que foi em uma quinta-feira. Há umas duas ou três semanas. Depois das aulas que temos à tarde, fomos estudar um pouco. Quando resolvemos ir embora, o carro veio. Estava fugindo da polícia. Eu estava atravessando a rua e quase me atropelou, mas o Athos me empurrou e acabou atropelado no meu lugar. Por sorte, só quebrou o braço”.

“Sei... Depois vamos querer detalhes para a reportagem, ok? Você disse que ele, o Athos, teve o braço quebrado. Ele recebeu assistência médica? Engessou o braço?”

“Ah, sim. Ele ficou um tempinho com o gesso, mas logo tirou”.

“Certo. Entraremos em contato futuramente, tudo bem, Daniele? Obrigado”.

“De nada”.

Athos... Rogério disse que ele vai levar a namorada pro churrasco, no sábado. Nem sabia que ele tinha namorada. Só então notei a aliança prateada, no mesmo dedo em que usa aquele anel preto estranho. Deve ser bem recente. De onde será que surgiu essa garota para amarrá-lo tão repentinamente assim? Talvez por isso sua atitude mudou para comigo. Não parece mais interessado em mim. E agora essa reportagem sobre nós dois. Aposto que essa namoradinha dele vai morrer de ciúmes...

---------------------------------------------------------------

Já estava voltando pra casa, quando notei a aproximação daquele enorme cachorro preto que vinha em minha direção. Não parecia agressivo, estava mais interessado em me cheirar, provavelmente por causa de algum resquício de odor que Lóki possa ter deixado em minhas roupas. Argh!

“Calma, aí, Killer! Fica tranqüilo que ele não morde. Ta só te cheirando. Desculpa, hein? Vem, Killer! Vem!”

Um cachorro chamado Killer e que não morde? Ta, acredito. O dono o puxa pela coleira e continua o passeio. Um típico dono de academia, alto e forte, vestindo calças jeans e uma camiseta preta. Achei-o familiar. Deve morar aqui por perto. Ou já o vi em algum outro lugar. Já o cachorro, eu nunca o tinha visto antes, mas quando estava indo embora, me lançou um olhar que me fez arrepiar. Um olhar que parecia inteligente, como se não fossem os olhos de um cachorro, mas de uma pessoa. Primeiro o homem no espelho, agora isso. Não duvido que o contato com o sobrenatural possa mexer com a sanidade das pessoas. Talvez eu esteja ficando louco...

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“O nome dele é Athos. Há duas ou três semanas ele salvou uma garota de um atropelamento, empurrando-a e sendo atropelado em seu lugar. Quebrou o braço, mas já tirou o gesso. Podemos conseguir mais informações na secretaria da escola, mas achei que este fato pudesse te interessar mais”. Antônio diz, ao entrar no carro.

“Duas ou três semanas... Não deve ter sido uma fratura muito grave. O carro não devia estar muito rápido”.

“Estava fugindo da polícia”.

“Hmm...”

“Você já considerou a hipótese do garoto ser o invasor?” Cérbero diz, entrando no carro, juntamente com Marcelo.

“É apenas um adolescente, Cérbero”.

“Pois é o cheiro dele que impregna o lenço”.

“Impossível. Ou você está deixando escapar algum odor ou então o lenço é uma pista furada. Ele é apenas um garoto e garotos não arrombam portas lacradas, nem derrotam assassinos treinados”.

“Ele também tinha um cheiro fraco e bem sutil. Algo quase imperceptível até pra mim. Talvez o garoto seja algum tipo de futuro assassino de alguma seita, como um dia você já foi. Talvez ele seja um prodígio bem precoce. O que sei é que senti cheiro de atividade infernal no garoto”. Ficamos em silêncio por um momento, depois que Cérbero terminara de falar. Então me virei para trás, para olhar diretamente para o Marcelo.

“Você foi derrotado por um garoto?”

“Vá se foder”.

“Qual a altura do invasor?”

“Sei lá”.

“Menor, maior ou da sua altura?”

“Sei lá, menor”.

“Da altura daquele moleque?”

“Eu não sei, cara! Já falei! Ele parecia ser feito de sombras! Era difícil distinguir formas!”

“Droga, Marcelo, o que diabos você tem feito todos esses anos? Você foi derrotado por um garoto? Logo você?” Digo, achando graça e me virando novamente pra frente.

“Eu treinei, seu filho da mãe! Treinei e estudei, você sabe disso!”

“Certo. Ele não deve morar muito longe daqui. Antônio, descobre o endereço do garoto e qualquer outra coisa que o colégio puder informar. Marcelo, você fica de olho nele. Se ele for mesmo o invasor, eu vou descobrir. Quero fazer uma visita pra ele, hoje à noite”.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:15

Parte 38: Tempestade

Em casa, Luna já havia preparado o almoço. Tiro um pedaço de carne crua do congelador e esquento para alimentar o falso gato. Almoçamos e, pouco depois, volto para o colégio, para as aulas da tarde. Chego meio atrasado e vejo Daniele me acenando para que eu me sentasse perto dela.

“O tal do Antônio falou com você?”

“Que Antônio?”

“O repórter”.

“Hein?” Levanto uma sobrancelha deixando claro que não faço idéia do que ela falava.

“Ele não falou com você? Parece que vão fazer uma reportagem sobre heroísmo e vão precisar entrevistar a gente por causa do caso do atropelamento”.

“Putz, não to sabendo dessa história, não”.

“Pois é, esse repórter veio falar comigo, hoje. Disse que estava colhendo fatos para essa futura reportagem e depois entrariam em contato. Não é demais?”

“Ô... Supimpa. Urruu”. Faço piada, comemorando sem nenhuma empolgação.

“Larga de ser chato. Vamos ficar famosos”.

“Ok, depois você me dá um autógrafo”. Digo, voltando minha atenção para o professor. Após o término das aulas, volto para casa, onde tomo um banho e apanho alguns livros das malas embaixo de minha cama, colocando-os na mochila. Rumo para a casa de Roxane, onde me identifico para o porteiro que me deixa subir, após contatar o apartamento pelo interfone. Sétimo andar. Toco a campainha e a porta não se demora para abrir.

“Oi. Está sozinha?”

“Oi. Estou. Meu pai acabou de sair, com o Pedro. Se você chegasse um pouquinho mais cedo, encontraria com eles. Entra”. Ela responde, séria. Vestia um short amarelo e camiseta branca, com um smiley amarelo desenhado.

“Então, ainda bem que não cheguei mais cedo”. Digo, entrando e me sentando no sofá, tirando a mochila das costas e abrindo-a, para retirar seu conteúdo. “Antes de mais nada, eu queria pedir desculpas pelo que aconteceu ontem”.

“Está tudo bem, Athos. Na verdade, é melhor esquecermos aquilo. Sério. Foi uma confusão, só isso”.

“Tem certeza?”

“Claro. Quero dizer, com aquela ajuda que você me deu quando nos conhecemos, depois o caso com o vampiro, essa troca de confidências... Sei lá, eu me senti atraída por você, mas foi uma coisa à toa. Quero dizer, o que você acha disso?”

“Acho que se você estiver bem, então tudo bem”.

“Ora, eu estou bem. Porque não estaria?”

“Certo... E ainda está disposta a me ajudar com esses livros? Eu posso tentar decifra-los sozinho caso você...”

“Não, não, está tudo bem. Eu ajudo, sim. Esse aqui está em latim, não é? Muitos dos livros que eu li estavam em latim. Vamos começar com esses”.

“Você é quem manda”.

Sinceramente, não acreditei que ela estava bem com aquilo, mas era melhor fingir que tinha acreditado. Eu precisava dela. Me sentia um porco sacana por pensar desta forma, como se estivesse usando-a, mas era verdade. E isto me fazia pensar se ela também não estava agindo da mesma forma, para poder ter acesso aos meus livros. Começou tentando me ensinar a entender o latim. Como o português se originara dele, imaginei que não seria difícil. Devia ser como aprender a usar algarismos romanos depois de já saber calcular usando números arábicos.

Quando percebi que já havia anoitecido, fizemos uma pausa, onde ela preparou um lanche, enquanto eu realizava meus rituais costumeiros. Assim que terminei o rito para localizar criaturas das trevas, senti três fracas sensações de direções, indicando que havia servos de alguma criatura por perto. Um estava relativamente próximo do prédio de Roxane. Os outros dois estavam em direções diferentes, um diagonalmente pra esquerda, outro pra direita. Três servos. O que estariam fazendo por ali e em um número tão elevado? Como se eu não soubesse... Voltei aos estudos.

Fiz várias anotações em meu caderno, enquanto tentava aprender o arcaico idioma usado naqueles livros. Porque diabos ninguém os atualizava? Quando começara a ficar tarde, resolvi ir embora. Deixei os livros com ela e prometi dar uma estudada no latim, usando outros tomos que eu guardava em casa. Combinamos de continuarmos na quarta-feira, quando seu pai e irmão estariam fora novamente. Nos despedimos e saí.

Enquanto caminhava de volta pra casa, avistei ao longe o dono da presença que estava mais próxima. Era um homem alto e forte, que caminhava e, logo, virou uma esquina, saindo de meu campo de visão. Como precaução, tirei o cabo de madeira preparado do bolso e soltei uma das alças da mochila. Continuei caminhando. A presença do homem que avistei não se distanciou muito, retomando a direção que seguia antes de sair de meu campo de visão, se dirigindo na mesma direção que eu. De repente, duas novas sensações surgem mais a frente, na direção de minha casa. Os outros dois que eu sentira anteriormente estavam mais distantes e não pareciam ter mudado de lugar. Os que mais me preocupavam eram aqueles na direção de minha casa, com os quais eu acabaria me encontrando. Tantas presenças já estavam me incomodando e me preocupando. Um mau pressentimento me tomava, mas eu continuava caminhando, ignorando-o.

Cada vez mais, eu me aproximava dos dois servos que permaneciam no mesmo lugar, como se me esperassem. Será que me encontraram? O homem no espelho, o cachorro de olhos estranhos... ‘Levariam muito tempo, pois EU sou O Rastreador’. As palavras do vampiro ressurgem em minha mente. Demoraram, mas me encontraram. E agora, eu estava indo direto até eles. Mas talvez eles ainda não tivessem descoberto sobre mim, estando apenas investigando a área. Se eu conseguir escapar dessa, terei de preservar melhor a região próxima a minha casa. Não posso chamar atenção pra minha mãe ou pra Luna. Uma das presenças se afastou, se encontrando com a do homem que eu havia avistado próximo à residência de Roxane. Uma delas permaneceu parada no meio da rua por onde eu caminhava. A sombra de uma árvore impedia que a luz do poste a iluminasse, deixando-a invisível, mas eu sabia que estava ali. Parei e fitei o local onde o servo deveria estar. Ele deu um passo a frente, surgindo da escuridão em que esteve oculto. Era enorme, suas roupas eram negras e seu rosto era muito pálido ou estava pintado de branco, mas não conseguia ver mais do que isso. Ele caminhou em minha direção e, de repente, ouvi um trovão, saindo da boca dele. “Boa noite, senhor Athos”.

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Incrível. Ele me percebera, mesmo oculto pelas sombras do Manto da Noite, oferecido a mim pelo mestre Sammael que disse tê-lo tecido da seda dos vermes negros que habitam as cavernas mais escuras do Inferno, onde nenhuma luz jamais chega. Parara de caminhar e me fitara, deixando claro que sabia que eu estava ali. Então, me revelei, dando um passo à frente e quebrando a ocultação. “Boa noite, senhor Athos”.

“Boa noite. Você tem um nome?” Ele diz calmamente, como se já esperasse por isso.

“Chamam-me de Ceifador”.

“Rastreador, Ceifador... Porque diabos vocês não usam nomes normais?” Ele se entrega, deixando claro que sabe por que estou ali, apesar de parecer estar me confundindo.

“Não sei quem é Rastreador, Athos, mas seu nome é seu cartão de visitas. Um nome bem escolhido deixa claro aquilo que você deseja”.

“Você não é um vampiro”. Então ele esperava um vampiro. Será que está sendo procurado pelos sanguessugas também? Noto-o dando discretos passos para trás, mantendo distância.

“Não, Athos. Eu sou o Avatar dos Sete Pecados. Estou aqui, pois a Irmandade exige retaliação pelo que foi feito há duas noites”.

“Posso perguntar como me encontraram?”

“Você deixou testemunhas e um pedaço do lenço que usava sobre o rosto. Isto foi o bastante para chegarmos até aqui”.

“Puxa, parece que foi bem fácil. Então você vai me matar? Vai fazer isso sozinho? Não vai chamar seus amigos?” Ele diz, aparentemente tendo conhecimento sobre a presença de Marcelo e Cérbero, que, no momento, me esperavam no carro.

“Eu trabalho sozinho”.

“Que bom. Fico mais tranqüilo sabendo que você é humano e não vampiro”.

“É bom estar tranqüilo diante da morte”. Digo para ele, diminuindo o tom de voz logo depois para recitar a invocação da Pecadora. “Vinde à mim, lâmina dos pecados”.

Num instante, brumas surgem diante de minhas mãos e, no instante seguinte, Pecadora, a enorme foice-lança infernal, arma pessoal do maior dos Pecados, mestre Asmodeus, se materializa. Canalizo uma parte de minha própria essência, fazendo com que a grande lâmina curva brilhasse rubra, como se estivesse em brasa. Faço com que meus olhos também brilhem em vermelho, dissipando toda e qualquer escuridão que pudesse me prejudicar.

Percebo que meu pequeno adversário se preparara também, murmurando alguma coisa e fazendo com que a escuridão ambiente tomasse forma próximo à sua mão, criando uma espada feita de trevas e sombras. Um feito realmente impressionante. Sua mão livre soltara a mochila que carregava e cobrira seus olhos por um instante sendo que, após descobri-los, estes estavam totalmente negros, como se suas órbitas estivessem vazias. Nos fitamos, por um momento. Então, resolvi terminar logo meu trabalho.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:16

Parte 39: Derrota

Ele parte em minha direção, preparando a enorme foice para desferir um golpe vertical descendente, enquanto eu o espero, formando um símbolo no meio do caminho entre nós dois, usando as sombras de algumas árvores do local. Assim que ele passasse pelo símbolo, eu invocaria tentáculos que o pegariam pelas costas, distraindo-o para que eu o atacasse pela frente. Não sabia o que faria com ele, depois que o subjugasse, porém, isso eu poderia decidir depois. Apenas esperei sua aproximação, pronto para pega-lo desprevenido, mas meu plano não funcionou como eu planejara. Ele levaria menos de três segundos para percorrer a distância que nos separava, mas, antes mesmo de alcançar o símbolo que o aguardava no chão, ele desaparece no ar. Mal tenho tempo de me surpreender, quando uma sensação de perigo, maior do que qualquer outra que já tive, chama minha atenção, fazendo com que eu me virasse para trás bloqueando o golpe com a espada de trevas. A lâmina sombria se choca contra o cabo da foice, enquanto a lâmina desta percorre toda a extensão de meu braço e me atinge entre as sobrancelhas, forçando-me a desviar meu corpo para o lado, enquanto o sangue escorria em minha face e o ferimento ardia e queimava, como se um ácido estivesse me corroendo.

Bloquear o ataque com um braço estendido fora completamente inútil, visto a força empregada por ele, que segurava a foice com as duas mãos. Se não me movesse rapidamente, teria sido partido ao meio pela grande lâmina que brilhava como se estivesse em brasa.

Mal escapei do primeiro ataque, ele ergue a foice e usa a lâmina de lança do outro lado do cabo da arma, para tentar trespassar minha coxa. Se eu mesmo não segurasse o cabo da foice-lança, o objetivo de meu adversário teria se concretizado. Apesar de eu não ter força suficiente para evitar completamente o golpe, a perfuração fora bem menos grave do que ele planejara. Ataco de mal jeito, com a espada de trevas, para distraí-lo e salvar minha perna, objetivo que é alcançado, quando ele solta uma das mãos e usa-a para se defender, bloqueando meu golpe com uma das grandes manoplas negras que portava. Tento me afastar, saltando para trás, quando sinto como se um caminhão me acertasse o queixo me projetando para trás com o impacto de um chute que mataria Roberto Carlos de inveja.

Não me permito ficar caído por mais de alguns milésimos de segundo e já me levanto após rolar e me afastar do inimigo em tempo de escapar de um golpe com a lâmina de foice que se enterrara no asfalto, tamanho o poder do ataque. Seguro a espada na frente de meu corpo, enquanto cuspo sangue e respiro ofegante. Medo e desespero se estampam em minha face ensangüentada, assim como no resto do meu corpo que treme diante daquele homem que parecia calmo e tranqüilo ante sua tarefa de me matar, tal qual a Morte que ele caracterizava.

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Reflexos extremamente rápidos, grande velocidade de reação, força muitas vezes maior do que seu físico aparenta... Apesar de parecer apenas um garoto idiota, ele possui habilidades que o tornam um oponente muito interessante. Se salvou de ter o crânio partido ao meio, assim como de ter a perna inutilizada. Amenizou o impacto do chute que deveria ter quebrado sua mandíbula e, por pouco, não ficou preso ao chão com a lâmina da Pecadora trespassada em seu peito. Eu o respeitaria mais se ele parasse de tremer e ocultasse melhor seu medo, mas não o culpo, é natural estar desse jeito. Todos ficam assim, quando se deparam comigo. Alguns com maior, outros com menor intensidade. O medo da morte, e daquele que a trás, é normal.

Ele perde uma boa oportunidade de me atacar, enquanto eu arranco do asfalto a lâmina infernal que continuava brilhando em brasa, como se aquecida com as chamas do próprio Inferno. Observo-o, esperando para ver do que ele realmente é capaz. Sinto meus reforços aguardando meu chamado e minhas ordens, para se envolverem no conflito. Até agora, não parece que precisarei de qualquer ajuda.

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Ele arranca a foice do chão, mas não me ataca. Parece aguardar que eu faça alguma coisa. Me observa, me avaliando de cima a baixo. Maldito! Endireito meu corpo e conserto o rosto, enquanto forço a adrenalina a fazer algo mais útil do que tremer de medo. Os tentáculos, idiota! Use os tentáculos! Você ainda está vivo, graças a eles! É claro que ele vai te dar uma surra, caso você não use os tentáculos! Reúno sombras ao nosso redor e formo símbolos. Limpo um pouco do sangue do rosto com a mão livre, ergo-a fazendo o sinal da mão chifrada anunciando-me como o senhor deles e invoco-os. “Brachi Abyssus!”

De repente, emergem, dos símbolos que nos cercam, vários tentáculos de trevas, prontos para me auxiliarem na luta. Vejo os olhos brilhantes do assassino observando tudo sem esboçar qualquer sentimento. Pior ainda, por um instante ele parece satisfeito com o que vê! Vou tirar essa satisfação da sua cara feia, filho da mãe.

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O ‘garoto’ reage realizando um rápido, confuso e poderoso rito que invoca uma selva de coisas aparentadas com tentáculos que saem do chão, nos cercando. Cada tentáculo media aproximadamente três metros, com a espessura do braço de um homem adulto forte e pareciam ser feitos de escuridão solidificada, tal qual a lâmina que ele portava. Sinto certa satisfação em saber que meus preparos não foram em vão e que o adversário é mesmo valoroso. Um garoto humano com a habilidade de manipular trevas se baseando em processos de magia mortal. Me pergunto o que o levara a invadir a sede da Irmandade. Será que estava mesmo atrás de mais conhecimentos místicos para se aprimorar? Provavelmente. Nem sempre é fácil entender o que motiva as criaturas da noite, mas uma coisa é certa: todas buscam mais poder.

Os tentáculos me atacam, tentando se enrolar e me imobilizar, enquanto eu revido perfurando e cortando-os, até que o próprio conjurador me ataca verticalmente, descendo a lâmina em minha direção. Bloqueio seu golpe com o cabo prateado da Pecadora, segurando-a com os braços cruzados e erguidos sobre minha cabeça. Descruzo os braços, desviando a espada de sua trajetória original e privando meu adversário de seu completo equilíbrio, ao mesmo tempo em que desço a foice num arco diagonal mirando seu pescoço desprotegido, deixando um rastro de luz avermelhada por onde a lâmina incandescente passava.

A batalha terminaria com aquele golpe, se não fossem os tentáculos que se enrolavam em mim e no cabo da Pecadora, desviando meu golpe e impedindo minha liberdade de movimentos. Seria difícil usar uma arma grande como a Pecadora em uma luta com os tentáculos e o ‘garoto’ ao mesmo tempo. Felizmente, pouco antes de um novo golpe da espada de meu adversário, meus reforços chegaram, respondendo meu chamado mental.

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Ele é rápido, forte e treinado, mas duvido que consiga dar conta dos tentáculos e de mim ao mesmo tempo. Ele se defende do primeiro golpe e quase termina a luta com o contra-ataque, mas os tentáculos o impedem (benditos tentáculos!) e abrem uma brecha para um novo ataque meu. Antes de efetuá-lo, porém, zumbidos altos tomam meus ouvidos enquanto grandes moscas gordas, verdes e nojentas invadem meu campo de visão, voando ao redor de minha cabeça. Me afasto do assassino, enquanto me movo freneticamente, tentando espanta-las. Acerto algumas com as mãos e outras com a lateral da espada, mas elas não se afastam. São várias. Um enorme enxame com dezenas e mais dezenas de varejeiras asquerosas voando sobre minha cabeça. Sinto-as se chocando contra mim, enquanto continuo me movendo tentando me livrar daquela nuvem grotesca de pestilência viva. Boca fechada, olhos semi-cerrados e ainda me preocupando com o ferimento na testa que poderia acabar me trazendo alguma doença, me afasto cada vez mais de meu oponente, enquanto luto com o enxame. Ao que parece, as táticas de distração dele são bem mais eficientes...

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Enquanto o rapaz se afasta, debatendo-se e tentando se livrar do enxame, saco minha adaga ritual e volto minha atenção aos tentáculos, que se enrolavam em mim tentando me imobilizar, destruindo um por um. Depois destes, guardo a adaga e me livro dos outros, que se encontravam mais distantes, usando a poderosa lâmina da Pecadora. Observo o resto do enxame se extinguir com os golpes do jovem que já parava de se debater. O Dom de Baalzebu, um rito simples e, como sempre, muito eficaz. Ele me olha furioso, todo sujo de sangue e moscas esmagadas e só então percebe que seus tentáculos já haviam sido destruídos.

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Enquanto eu lutava com as moscas, ele lutou com os tentáculos. Ambos saímos vencedores contra as distrações e nos fitamos novamente. Ele me olha impassível. Não está nem ofegante. Esperamos como dois pistoleiros num filme de faroeste. Conto as batidas aceleradas do meu coração como o tic-tac do relógio, esperando a badalada para sacarmos as armas. Dane-se a badalada, eu saco. Gero o símbolo, aponto a mão chifrada e invoco-os. “Brachi Abyssus”.

No mesmo instante, o braço de meu inimigo também se ergue fazendo o símbolo da mão chifrada. Inicialmente, eu não entendo, mas depois que os dois tentáculos surgem, percebo o que ele fizera. Um dos tentáculos o ataca normalmente, mas o outro avança sobre mim, fazendo-me desferir um golpe em minha própria invocação, que ainda se enrola em meu braço, queimando minha pele com o frio da escuridão que o compunha e me forçando a puxar a lâmina ainda presa a ele, terminando de destruí-lo. Ao invocar os tentáculos, não apenas eu, mas também ele, nos anunciamos como seus senhores. Isto, de certa forma, confundiu as sombras que acabaram não acatando à vontade de ninguém. Ele encontrou uma brecha em meu rito e o usou contra mim. Ainda envolto a pensamentos, volto a focar minha atenção na batalha quando percebo o adversário desferindo um golpe estranho com a lâmina de foice ascendendo. Ele só precisara de um golpe para destruir o tentáculo e já avançara na minha direção, me pegando desprevenido.

Tentei me desviar, mas não fui rápido o bastante e senti a lâmina queimando e corroendo minha carne enquanto fazia um corte rápido ligando meu peito e ombro esquerdo. Nem me recomponho direito e ele já desfere um novo golpe, horizontal. Por instinto, me abaixo e vejo a guarda de meu adversário aberta. Me levanto rapidamente para aproveitar a brecha quando ele solta uma das mãos do cabo da foice e me acerta uma cotovelada no rosto que me faz cambalear. Não vejo o que ele faz com a foice, possivelmente largando-a, mas sinto um trem de carga me acertando quando ele desfere um soco bem impulsionado com o outro punho, coberto pela enorme manopla de metal. Caio no chão, soltando a espada que se desfaz no ar e ouço apenas o cabo de madeira se chocando com o chão.

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Não entendi completamente o tal rito, mas compreendi parte dele. Meus anos de experiência com magia me foram úteis para tentar me proteger das invocações com o mesmo ‘mano cornuto’ que ele usava. A desorientação dos tentáculos provou minha teoria. Depois disso, foi simples acerta-lo. Com uma palavra rápida sussurrada, envio Pecadora de volta ao seu santuário e golpeio-o com meus próprios punhos. Ele cai no chão, se apoiando nas mãos, então aproveito para lhe chutar a barriga. Ele se afasta rastejando, derrotado e aterrorizado até se encostar no muro, se encurralando. Saco mais uma vez minha adaga ritual e ergo-o do chão, pegando-o pelo pescoço, colocando-o contra a parede. “Você foi um adversário valoroso. A maioria tenta, inutilmente, fugir. Mas isto não apaga seu crime. Você ficou no caminho dos Pecados e para esta afronta, a punição é a morte. Espero que tenha a chance de se aprimorar no Inferno. Últimas palavras?”

Ele se segura em minha mão, com os olhos fechados, tentando afrouxar um pouco a pressão da garganta para falar alguma coisa. Eu coloco a adaga em seu pescoço e me aproximo para ouvir melhor seu balbuciar, esperando pedidos de misericórdia ou insultos finais. Inicialmente, não entendo o que foi dito. “Via... Tenebrárum”.

De repente, percebo um círculo arcano, feito com sombras, ao redor dele. Antes que eu possa fazer qualquer coisa, todo o círculo se torna um buraco negro de escuridão absoluta. Reajo forçando a adaga rapidamente para cortar sua garganta, mas a lâmina atravessa a massa de trevas que agora compunha sua carne e ossos, como eu imaginara que ocorreria no momento em que deixei de sentir o peso de seu corpo. No instante seguinte, ele é sugado pelo buraco negro que também desaparece logo em seguida, deixando no lugar, um muro comum sujo de sangue. Fugiu. Mesmo diante do fracasso, um sorriso brota em meu rosto, enquanto uma possibilidade surge em minha mente. Volto para o carro.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:17

Parte 40: Sobrevivência

Eu morri. Escuridão por todos os lados... Não vejo, não ouço, não sinto... Apenas flutuo no vazio infinito... Não me lembro de quem eu sou ou porque estou ali... Não penso... Apenas flutuo... Eu morri. Um dia inteiro se passa e nada muda... A escuridão e o vazio continuam iguais... Nenhuma sensação, nenhum estímulo, nenhum pensamento... Apenas flutuo... Estou morto. Um mês se passa e ainda estou ali... Ou talvez, eu não-esteja ali... Não sei dizer se esse ‘ali’ é um lugar ou mesmo se ele existe... Não sei dizer, porque estou morto. Apenas flutuo na escuridão sem fim... Um ano se passa, desde que cheguei... Continuo morto, mas agora me lembro de algumas coisas... Um enorme homem negro, vestindo um manto escuro como a noite e uma máscara que parecia o crânio de alguma criatura humanóide com longas presas e pequenos chifres. Ele me matou? Ele queria me matar... E agora estou morto. Dez anos se arrastam lentamente naquele não-lugar. Eu queria sair dali, mas não posso... Eu morri.

De repente, estou caído no chão. Um vento frio sopra forte, enquanto eu me encolho em posição fetal. Meu rosto sangra, sinto o gosto ferroso em minha boca e minha camiseta também está molhada. Moscas esmagadas empapam meu cabelo e se espalham por meu rosto, peito e braços. Meu corpo dói, com os golpes que levei. Sinto que estou em um lugar alto, mas ainda não abri os olhos para ver. Eu tinha morrido. Senti a lâmina do Ceifador atravessar meu pescoço e fiquei perdido num lugar de escuridão e vazio infinitos. Vaguei por esta inexistência durante anos. Só não enlouqueci por que não conseguia pensar ou mesmo me lembrar. Abro os olhos. O céu se encontra estrelado acima de mim. Me levanto para ver onde estou e me surpreendo. Vejo toda a cidade dali de cima. Eu estava sobre a torre da antena da TV Anhanguera, onde, certa vez, meu pai me levara. Ele tinha um conhecido que trabalhava lá e nos acompanhou até ali. Com certeza, um dos pontos mais altos de Goiânia. O vento soprava frio, lá encima, enquanto eu observava as luzes da cidade. Era como se fosse outro céu, no chão.

Ceifador. Ele me vencera. Me derrotara. Quase me matara. Teria conseguido se, no último segundo, eu não tivesse tentado desesperadamente aquele último feitiço. Eu percorri as sombras da cidade, na procura de um lugar seguro. E aquele era o lugar que eu havia encontrado. Quando meu pai me trouxe ali, me imaginei um poderoso general, protegido em sua torre de comando. Naquela época, meus pais ainda estavam juntos. Naquela época, ele ainda era um herói, para mim. Era estranho estar ali graças a uma lembrança em que estive com ele. Me lembro do vazio em que estive há pouco, enquanto percorria as sombras da cidade. Me lembro da estranha sensação de passagem do tempo. O desespero quase enlouquecedor daquele não-lugar frio e morto. A agonia da eternidade no vazio. Espero nunca mais ter de fazer aquele feitiço. Não quero passar por aquilo novamente.

Tiro a camiseta. Tenho que comprar novas roupas. Eu estava arruinando as que eu tinha. Crio símbolos em meu corpo e invoco tentáculos. Os sinistros braços de trevas solidificadas surgem para me tirar dali sem que ninguém me visse. Cada um com uma pequena autonomia, o suficiente para atenderem meus desejos. O Ceifador conseguira se livrar de meu principal trunfo. Ele era maior, mais forte, mais preparado... E ele voltaria para terminar o que começou. Ele sabe onde eu estudo e sabe onde eu moro. Minha mãe e minha irmã estavam em perigo. Preciso encontrá-lo e pôr um fim nisso. Não importa se ele é melhor do que eu em tudo. Eu preciso dar um jeito. Eu vou dar um jeito. Pego o celular.

“Alô, mãe?” Digo após ouvir minha mãe atender o telefone.

“Athos? Onde você está, meu filho?”

“Mãe, hoje eu vou dormir na casa de um amigo meu, ta? Mas não se preocupa, não, porque está tudo bem”.

“Não quer que eu te busque?”

“Não precisa, não, mãe. To ligando só pra te avisar”.

“Ta bom, meu filho”.

“Ta tudo bem com você? E a Luna? Ta bem também? Já está dormindo?”

“Está, já está dormindo. Está tudo bem aqui, por quê?”

“Nada não. Só pra saber mesmo. Então, um beijo, mãe. Te amo”.

“Beijo, filho. Também te amo”.

“Boa noite. Tchau”.

“Tchau”.

Eu soco um poste, enquanto lágrimas lavam meu rosto. Começo a chorar, liberando o que sentia. Graças a deus, parecia estar tudo bem com elas. Pelo menos por enquanto. Se alguma coisa lhes acontecesse... Maldito, Khestalus! Porque, diabos, tinha de aparecer na minha vida?! Porque não me deixou em paz?! Me sento na calçada por onde caminhava e levo as mãos ao rosto. Engulo o choro. A culpa de aquilo estar acontecendo não era do Khestalus, era minha e eu tinha de consertar. E eu precisaria ser forte. Não podia liberar o que sentia em forma de lágrimas. Era preciso conter e transformar aquilo em algo mais útil. Não podia ficar procurando culpados. Tinha de encarar meus erros e corrigi-los. De repente, meu celular toca e o mostrador exibe um número desconhecido.

“Alô”.

“Estava preocupado com sua família?” Um trovão explode pelo fone, deixando claro quem estava falando.

“Se fizer alguma coisa com elas...”

“Calma, rapaz. Nem chegamos perto delas. Ainda. Estou te ligando para te convidar para um almoço, amanhã. Em paz. Conhece o Copacabana? Me encontre lá, ao meio-dia. Precisamos conversar. Não vou lhe fazer mal algum. Se eu quisesse, te mataria ainda esta noite. Esteja lá, ok?”

“Ok”. Ele desliga. Que porra ele quer comigo? Isto só me dá mais um motivo para querer acabar logo com isso. Ele ameaçou minha família. Vai ter o que merece. Eu vou dar um jeito. Eu vou acabar com isso. Me levanto e volto a caminhar.

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O barulho da janela de meu quarto se abrindo me faz acordar assustada. A pouca iluminação que vem de fora me permite ver uma silhueta entrando. Tinha algo entrando pela minha janela, no sétimo andar! Eu já estava me concentrando, buscando minha essência imortal, a parte dentro de mim que guardava minha centelha divina, preparando os feitiços para me defender quando uma voz familiar chega a meus ouvidos. “Roxane?”

“Athos? É você?”

“Desculpa ter te assustado. Posso acender a luz?”

“Claro. O que faz aqui? E porque entrou assim? Ou melhor: Como entrou assim, pela janela do sétimo andar?”

“Desculpa, mesmo, Roxane. Mas eu não sabia pra onde ir. Não podia voltar pra casa”. A luz se acende e, após me acostumar com a claridade, me assusto com o que vejo. Athos tinha o rosto coberto de sangue, sendo que um pouco parecia sair da boca, um pouco do nariz e a maior parte de um corte na testa. Sua camisa estava pendurada na calça, deixando a parte superior de seu corpo exposta e apresentando um corte indo do peito até o ombro esquerdo. Os cabelos estavam bem sujos, mas não soube identificar com o quê. A coxa também tinha uma perfuração, que manchara a calça com mais sangue.

“O que aconteceu com você?!”

“Os caras de quem roubei os livros, me encontraram. Tentaram me matar. Quase conseguiram, mas, felizmente, eu fugi. Não se preocupe. Eles não me seguiram. Mas não sei se podem me rastrear até aqui. Me desculpe, mas eu não sabia pra onde ir”.

“Ta tudo bem. Pode ficar aqui, hoje. Mas ninguém pode saber”.

“Eu posso ficar embaixo da sua cama. Assim, ninguém me vê”.

“Pela manhã, a casa fica vazia. Eu vou fingir que fui à escola e volto pra ficar contigo. O que vai fazer, agora que te encontraram?”

“Vou acabar com eles”.

“Vai matá-los?!”

“Não sei... Mas não vou dar a eles a chance de ferir outras pessoas. Se alguém tiver que morrer, que sejam eles”. Ele não parecia olhar para lugar nenhum, mas seus olhos demonstravam uma determinação férrea. Era difícil não sentir medo e admiração, mesmo no estado em que ele se encontrava.

“Vem. Você precisa se limpar”. Acompanho-o até o banheiro, para lavar seu rosto e seus ferimentos. Passamos uma água em seu cabelo, para tirar o grosso e deixamos para lavá-lo outra hora. Passamos álcool em seus cortes, fazendo-o sentir ainda mais dor e obrigando-o a cerrar os dentes para continuar em silêncio, pois meu pai e irmão já haviam voltado e estavam dormindo.

“Acha que consegue costurar isso?” Ele me pergunta, apontando o corte no peito.

“Como assim?”

“Pontos. Médicos fazem muitas perguntas. Acha que você consegue?”

“Por favor, Athos. Não me peça isso”.

“Isso significa ‘não’, tudo bem, foi só uma pergunta. Eu mesmo posso fazê-lo”.

“Inventa uma história. É só um corte. Eles vão engolir”.

“Já caminhei bastante por hoje. Você tem agulha e linha aí?”

“Tenho... Mas pode deixar que eu faço”. Eu lhe dou o cabo de uma colher de madeira para morder, enquanto começo a costurar sua carne com linha de pesca. Por pior que fosse, eu tinha de fazer. Aposto que minha experiência com agulhas e linhas era maior que a dele. Era uma sensação horrível, furar a pele com a agulha e costura-la, fazendo a linha correr por dentro dela e juntar a carne separada pelo corte, mas eu tinha de ser forte, eu tinha de fazer. Depois do corte no peito, tomei um copo com água e açúcar, para me acalmar e terminar a costura, dando alguns pontos no corte em sua perna e depois em sua testa. Finalmente terminei e, após lavar o sangue todo novamente, fomos nos deitar.

Antes de se enfiar embaixo de minha cama, porém, ele pediu alguns papéis e caneta. Não parecia querer dormir, apesar de estar visivelmente cansado. Deitei sobre a cama e, no silêncio e escuridão do quarto, podia ouvir ele respirando e se movimentando ali embaixo. Se a história que me contara for verdadeira, ele era filho de um demônio. O resultado da união de uma mortal com uma entidade espiritual materializada. Um Nephalim. Onde li, dizia que eles não nascem por acaso, então imaginei que o que ocorre com eles, também não deve ser por acaso. Talvez o envolvimento de Athos com essas pessoas fosse inevitável. E agora, falando em matá-los, como eles tentaram fazer com ele... Isso pode ser o início de um caminho sem volta, já previsto em seu legado kármico infernal. E seu envolvimento comigo? Será que não teria algum significado? Será que ele poderia fugir de seu legado? Durmo, divagando sobre isso.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:17

Parte 41: Cara a Cara

Acabei cochilando sobre os papéis em que estava rascunhando meus planos de contra-ataque. Eu tinha de me preparar bem. Nada podia dar errado, ou seria o meu fim. Acordei com Roxane me chamando. Estava vestindo o uniforme de seu colégio e me trouxe um sanduíche e um copo de leite.

“Obrigado”.

“O que vai fazer, agora?”

“Começar a me preparar para a noite. Mas antes preciso voltar em casa para trocar de roupa. Vou me encontrar com o assassino que me atacou, o tal do Ceifador, agora no almoço”.

“Como assim?!”

“Depois que fugi, ele me ligou para me convidar pra almoçar com ele. Disse que queria conversar comigo”.

“É uma armadilha, Athos!”

“Acho que não. E, se for, tenho de cair nela. Caso eu não apareça, eles podem fazer mal à minha família”. Ela pára de falar, pois não sabe o que dizer. Ela sabe, assim como eu, que estou totalmente ferrado, então muda de assunto.

“O que são esses papéis?”

“Planejamentos. Anotei coisas que sei que ele pode fazer e estudei formas de usar o que eu posso fazer contra ele”.

“E se não der certo? E se você morrer?”

“Eu não vou morrer”.

“Como pode saber?”

“Eu perdi pra ele uma vez. Não vou perder de novo”.

“Perder? Athos, isso não é um jogo!”

“Agradeço por tudo o que fez por mim, Roxane. Acho que nunca poderei retribuir. Eu queria poder deixar todos os livros com você, mas não posso voltar aqui, pois eles podem estar me esperando em casa, para me seguir, então vou resolver tudo e amanhã eu te ligo”. Digo, vestindo a camiseta rasgada e me dirigindo até a saída.

“Promete que me liga?”

“Amanhã, na hora do almoço”.

“Certo. Tchau”.

“Tchau”. As portas do elevador se fecham e meu semblante de autoconfiança desaparece. Espero que não fique muito preocupada. Volto para casa, repassando meu planejamento e me perguntando se minhas idéias funcionarão. Me lembro de ter de sacar algum dinheiro, para comprar o material que vou precisar. Chego em casa e Lóki se levanta do sofá, miando, impossibilitado de falar em sua forma felina.

“Os caras de quem roubamos os livros me encontraram”. Explico, enquanto entro no banheiro para tomar um banho rápido e escovar os dentes.

“Tentaram me matar, mas consegui fugir. Agora estou indo almoçar com o assassino. Ele quer conversar comigo. Você vem junto. Talvez possa ser útil, apesar de eu duvidar”. Saio do banheiro e me visto. Vou até a cozinha, onde pego um pedaço de carne e coloco para esquentar. Com uma faca, corto um pedaço do cabo de uma vassoura e começo a entalha-lo, enquanto Lóki comia. Guardo o pedaço de madeira em meu armário, junto com as cartas de um baralho de plástico, álcool, algodão e rolos de fita adesiva. Faço um pequeno curativo sobre a testa, para ocultar os pontos, chamo Lóki e nos dirigimos ao ponto de ônibus, saindo antes que Luna chegasse do colégio. Estava na hora do estranho encontro com meu algoz.

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Ele chegou no horário marcado, apesar de desconfiado, olhando para todos os lados. O corte na testa estava oculto por um pequeno curativo. Tinha amarrado o cabelo em um rabo de cavalo e vestia camiseta preta, calça jeans e tênis. Um gato preto o acompanhava, procurando evitar a luz solar direta. Nos fitamos e apontei a cadeira para que ele se sentasse. O gato se escondia atrás dele, com medo. Eu me vesti de forma apropriada ao belo restaurante em que estávamos, usando camisa social branca com um blazer azul escuro, mas nunca dispensando os óculos negros e o enorme cão que sempre me acompanhava. Felizmente, não havia muitas pessoas no local, que exigia um poder aquisitivo mais elevado, o que nos permitia conversar normalmente, sem bisbilhoteiros. Aponto a cadeira, onde repousava sua mochila. “Esqueceu isso, no nosso último encontro”.

Ele a apanha, sem dizer nada, e se senta, ainda ressabiado, então inicio o diálogo. “Pode parecer estranho, mas fiquei feliz quando você fugiu”.

“Por que você ficaria feliz ao fracassar na tentativa de me matar?”

“Porque me fez pensar que eu não precisava te matar”.

“E por que não?”

“Porque você é incrível. Seria um desperdício matar alguém como você”.

“Vá direto ao assunto”.

“Este familiar que te acompanha, foi dado pelo seu magister?”

“Hã?”

“O gato. É um familiar, não é? Foi dado por seu mestre? Ou você é um negociante independente?”

“Eu não tenho mestre”.

“Então é independente. Você é realmente bem jovem. Quantos Pactos já fez? E como começou a fazê-los?”

“Nunca fiz nenhum Pacto”.

“Ora, Athos, por favor. Ninguém escapa de mim sem ser incrível e ninguém se torna incrível sem alguns Pactos”.

“Eu já disse. Não tenho Pactos. E pare de me enrolar, vá direto ao assunto. O que queria falar comigo?” Neste momento, o pedido que havia feito previamente chega, forçando-nos a fazer uma pausa em nossa conversa. Assim que estávamos sós novamente, respondo sua pergunta, enquanto começo a comer.

“Já que é independente, junte-se à Irmandade. Terá acesso a muitos conhecimentos, além de tutores para te ajudar. Tenho certeza que, com seu potencial, subirá rapidamente na hierarquia, podendo se tornar o terceiro no comando de toda a seita, que está presente em vários pontos do país”.

“Você ta de sacanagem, né?”

“Você derrotou um de nossos assassinos e sobreviveu a mim. Falo sério quando digo que subiria rapidamente. O convite é verdadeiro”.

“Porque, diabos, você acha que eu me juntaria a um bando de desgraçados que sacrifica pessoas inocentes para seres ainda mais desgraçados?”

“Não existe ninguém inocente, Athos. É uma coisa que você acabaria aprendendo com o tempo. Você ainda é jovem. Estou te dando uma chance única para se aperfeiçoar e viver de uma forma que você nunca imaginou. Servir aos Sete Pecados trás recompensas incríveis”. Digo fazendo um gesto para a mulher na mesa ao lado. Márcia se levanta e se dirige até o garoto, sentando-se sobre a mesa e cruzando as belíssimas pernas bem debaixo do nariz dele. Era uma mulher incrível.

“Essa mesa está ocupada, moça”. Ele diz, após subir os olhos das pernas dela para o rosto. De seus olhos emanavam determinação e raiva, deixando Márcia surpresa e fazendo-a se virar para mim, sem saber como agir. Eu abano a mão, dizendo-a para sair.

“Recusar uma mulher daquelas não é normal, Athos”.

“Matar pessoas é que é anormal”.

“Quer dizer que não quer mesmo pensar na proposta?”

“Já pensei. Quero que você enfie sua irmandade no seu rabo e vá se danar junto de seus amiguinhos nojentos”.

“Muito bem. Se é esta sua decisão, que assim seja. Hoje à noite, vou te encontrar novamente, não importa onde ou com quem você esteja. E desta vez, não vou pegar leve e nem te deixar fugir. Hoje, eu vou te matar”.

“Não. Você vai tentar. Vai torcer para que seus métodos funcionem novamente, pois se, por algum motivo, não funcionarem, você não terá uma terceira chance”.

“É uma pena que não queira se juntar a nós. Até à noite”. Ele se levanta, sem ter tocado na comida e começa a caminhar, porém, após três passos ele pára e volta até mim.

“Quero fazer um Pacto”. Ele diz, me fazendo sorrir satisfeito.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:18

Parte 42: Prenúncio

“Quero fazer um Pacto”.

“Mudou de idéia?”

“Não. Mas quero fazer um Pacto. Com você”.

“Comigo?”

“Sim. Esta noite você vai até mim. Eu estarei te esperando no mesmo lugar em que lutamos na noite passada. Se eu te derrotar, se eu te vencer, vocês vão me deixar em paz. Eu não quero matar ninguém, mas vocês terão de me deixar em paz. A mim e a minha família”.

“E se eu te vencer?”

“Eu te conto como ser ‘incrível’ como eu”.

“Não me parece um bom Pacto. Como você vai me contar se estiver morto?”

“Estará escrito em um papel e guardado no meu bolso traseiro”.

“Certo... Mas saiba que se você não cumprir sua parte no Pacto, vou matar sua família”.

“E se você não cumprir a sua, terei de matar você e seus colegas. A vida da minha família me força a cumprir minha parte, assim como a sua vida te força a cumprir a sua. Negócio fechado?” Digo, estendendo minha mão. Ele sorri e a aperta, com força. Eu retribuo o forte aperto, enquanto várias imagens de pessoas sendo mortas por ele dançavam em minha mente, mostrando quanto sofrimento ele já havia espalhado e quanta dor ele já havia provocado. Me viro e vou embora. Eu tinha uma chance de sair dessa limpo, mas poderia confiar nele?

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Me contar como ser ‘incrível’ como ele... Será que ele cumpriria sua parte no Pacto? Será que vai mesmo colocar em seu bolso o segredo de usar as sombras daquela forma? E o que será o segredo que estará nesse papel? Um mapa de onde estariam os livros que ele estudou para aprender aquilo? Ou a invocação do demônio que lhe concedeu tal poder? Não, ele falou a verdade quando disse que não tinha Pactos, a não ser que seja o melhor mentiroso do país. O garoto está me saindo mais misterioso do que eu imaginava. Minha vinda a esta cidade foi mesmo interessante. Talvez eu volte para casa com conhecimentos novos e preciosos. Na pior das hipóteses, terei de bolar a morte de uma mulher e sua filha. Termino de almoçar, acompanhado por Márcia e Cérbero.

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Volto pra casa, carregando uma pequena lata de tinta preta, uma broxa e uma caixa de papelão vazia, após passar no banco para tirar algum dinheiro e conseguir o material do qual eu precisava. Luna assistia TV quando cheguei. Me fez perguntas sobre eu não ter ido à aula, sobre o que eu estava carregando e sobre o curativo na testa, mas logo desconversei dizendo que caí e tinha de fazer um trabalho pro colégio. Eu tinha cerca de seis horas até o anoitecer e precisava estar tudo pronto até lá. Não podia falhar. Se o Ceifador cumprir o Pacto, minha família estará protegida, mas para isso, eu teria que vencê-lo ou, após morrer, entregar o anel de Khestalus e fazer dele uma pessoa ainda mais perigosa do que já era. Tudo tinha que dar certo. Não podia falhar.

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O garoto estava planejando alguma coisa. Mesmo após a surra e quase morte na noite anterior, parecia ter esperanças de me vencer e estava determinado a isto. O Pacto proposto por ele era uma prova clara dessa esperança. Resolvi não subestima-lo. Ao meu pedido, Fernando disponibilizou uma chácara mais distante da cidade, para que eu pudesse me preparar melhor. Além do Dom de Baalzebu, resolvi preparar outra surpresa para o Athos. Pedi para Antônio contatar outros membros da Irmandade para que me conseguissem cadáveres, sejam de antigos sacrifícios guardados, sejam roubados do IML local. Antes de morrer, o garoto veria os Portões do Inferno serem abertos para recebe-lo.

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Enquanto a tinta do desenho que fiz no meio da rua secava, fui trabalhar no muro. A superfície vertical dificultava um pouco as coisas, pois não podia deixar a tinta escorrer. Qualquer um que passasse por ali e me visse, pensaria que sou um marginal deixando minha marca na propriedade alheia. Tinha de me lembrar de sumir com os desenhos após a luta para preservar a área próxima a minha casa. Enormes símbolos místicos poderiam chamar atenção indesejada. Mas hoje, eu precisava abrir aquela exceção. E tudo tinha que dar certo. Nada podia falhar.

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A medida que os cadáveres chegavam, trazidos por outros membros da seita, iam sendo colocados no chão da grande sala para a realização do ritual. Me conseguiram dez corpos, um número razoável para meu plano. As janelas fechadas deixavam o ambiente escuro, para que o rito pudesse ser realizado. Antônio me auxiliava, coordenando os outros homens na preparação do local e na disponibilização dos materiais. Como mestre de cerimônias, era o mais versado nas Artes, entre os que estavam ali presentes, e já estava até acostumado com aquilo. Em pouco tempo, o rito poderia ser realizado, para abrir os Portões do Inferno e trazer os mortos de volta à vida.

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De volta em casa, comecei a trabalhar nas cartas de baralho. Para não transparecer minha preocupação, coloquei uns CDs no aparelho de som. Luna pensaria que eu estava estudando, dentro do quarto, não passando álcool em cartas plásticas. Eu tinha um plano. Não era um plano muito detalhado ou ordenado, mas ainda era um plano e era o que eu tinha. Tudo daria certo. Nada podia falhar. Continuei me preparando, ironicamente ouvindo os Titãs tocando Enquanto Houver Sol. Sim, enquanto a noite não caísse, eu ainda tinha tempo e esperança. Depois de terminar com as cartas, peguei uma folha de papel para cumprir minha parte do Pacto. Ao me lembrar da luta, na noite anterior, o medo se intensifica, sobrepujando, por um momento, a raiva. Além do recado para o Ceifador, escrevo alguns outros, para serem encontrados caso o pior aconteça. Minha mãe, Luna, Graça, meu grupo de RPG, Roxane... Eles mereciam alguma satisfação, apesar de eu não poder contar a verdade. Algumas lágrimas escapam, ao pensar na possibilidade de minha morte. Continuo escrevendo, enquanto o Sol se deitava, apático ante a minha situação. Ignorando minhas próprias dúvidas e crenças, eu rezo, esperando que algum Deus me ouça e interceda por mim.

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Antes de iniciar meu ritual para animar os cadáveres, pedi para Antônio me conseguir um gato preto. Não precisei falar mais nada, pois ele entendera a mensagem e se ofereceu para rogar a praga ele mesmo, enquanto eu me ocupava com os corpos. Agradeci e voltei minha atenção ao ritual, me concentrando e entoando os cânticos que traria nova vida aos mortos. Por um instante, pensei se não estaria exagerando, mas então me lembrei dos olhos determinados do garoto e retornei ao rito com convicção renovada.

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Alfredo chegara cedo, antes do almoço, interrompendo seus exercícios. Trouxe os exames de Bárbara, feitos no dia anterior, e disse que ela não apresentara melhoras. A garota dizia se sentir muito fraca, com dificuldades até para andar. Ele os observou e não notou nenhum problema com o sangue da garota, fazendo-o descartar a hipótese de anemia. Perguntou sobre a alimentação dela, mas Alfredo respondera que era normal. Fez a receita, com soro fisiológico, glicose e vitaminas. Caso não melhorasse, precisaria ser internada para uma melhor investigação. Rezou pedindo a Deus para que aquilo não fosse necessário.

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“Pai, você sabe alguma coisa sobre os sete pecados? Quero dizer, sobre pessoas adorando e servindo aos sete pecados, como uma irmandade?” Perguntei, procurando saber alguma coisa sobre as pessoas com quem Athos havia se metido. Quando o olhar de meu pai se encontrou com o meu, percebi que talvez tivesse sido melhor ficar calada.

“Por quê? Foi algo que o rapaz ‘escorregadio’ disse? Ele pertence a esta seita?” Ele pergunta, até mesmo lembrando o termo que usei para definir Athos quando perguntada se tinha descoberto algo sobre ele, após nosso encontro, no domingo.

“Ele não pertence a nenhuma seita, pai, mas vejo que a resposta pra minha pergunta é ‘sim’. O que sabe sobre eles?”

“Pra que quer saber sobre isso?”

“Sei lá. Curiosidade”.

“Você sabe o que dizem sobre a curiosidade, não é?”

“Vai falar ou não?”

“É uma seita de malucos que cultuam um panteão de sete demônios, cada um representando um dos sete pecados apresentados por Dante Alighieri em seu livro, A Divina Comédia. É uma das seitas mais antigas, poderosas e perigosas presentes em nosso país. Entre suas práticas estão sacrifícios humanos, magia negra, seqüestros, assassinatos, tráfico, prostituição... É isso que eu sei”.

“Sabe algo sobre o Ceifador?” Desta vez, a expressão de meu pai me fez ter certeza de que devia ter ficado calada.

“Certo, Roxane, onde foi que você ouviu falar sobre essa gente e por que o interesse?”

“Sei que ele é um assassino, mas isso não diz muita coisa”.

“Me responda, Roxane!”

“Ta bom, ta bom. Foi o Athos. Ele que me falou sobre essa gente, mas ele também não sabia muito sobre eles. Por isso resolvi perguntar pra você”.

“Já ouvi falar nele. O Ceifador é um assassino, sim, mas não é só isso. Ele é o maior assassino da Irmandade dos Sete Pecados e, certamente, uma das pessoas mais perigosas do país. Dizem que os Sete Pecados investiram tanto de sua essência nele que o transmutaram num híbrido de humano e demônio. Dizem que ele só age em casos extremos, pois a Irmandade possui vários outros assassinos treinados para resolverem problemas regionais menores, visto que ela possui sedes em várias cidades do Brasil. Ouvi dizer que eles seqüestram crianças para treinarem-nas como servos de diferentes áreas da seita, vendendo suas almas e estudando magia negra. É por essas e outras coisas que se deve manter o máximo de distância possível deles. Qualquer relação com a Irmandade dos Sete Pecados pode ser perigosa”.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:18

Parte 43: Revanche

Eu o esperei de pé, ao lado do grande símbolo desenhado no chão. A calça jeans era a mesma que usei em nosso primeiro encontro, mas desta vez vesti uma blusa com mangas compridas e o sobretudo. Também amarrei o cabelo e coloquei o lenço no rosto, mas não mesclei sombras às vestimentas. Ele já sabia quem eu era e o quê eu era. Não fazia sentido tentar assusta-lo, pois não funcionaria, mas minha aparência fazia parte do plano. Como não manipulei as sombras sobre mim, quem estava ali não era o demônio de sombras. O Ceifador atacara e ameaçara o Athos e era o Athos que queria acertar suas contas. Eu podia sentir Lóki sobre uma árvore, observando tudo. Desde que o Sol desapareceu no horizonte, ele voltara a sua forma verdadeira e ficara me azucrinando dizendo que eu devia ter aceitado a aliança com a Irmandade, para usá-los o quanto pudesse, antes de voltar para o ‘mestre’ Khestalus. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir aturá-lo.

Enquanto esperava, podia sentir uma fraca sensação de direção, apontando um servo nas proximidades. Talvez um lacaio do Ceifador, me vigiando, apesar da distância dele não indicar isso. Não podia ir averiguar, pois tinha de ficar próximo às minhas preparações. O desenho no chão e o desenho no muro, sendo que este segundo estava oculto por um pedaço de papelão colado com fita adesiva. Com sorte, meu adversário não o perceberia até meu ardil se completar. De repente, sinto três fracas presenças se aproximando. Então, duas delas param e apenas uma continua. Vejo-o dobrar a esquina, vestindo seu manto negro, amarrado em pontos estratégicos do corpo para não atrapalhar os movimentos, usando sua máscara em forma de crânio inumano e portando a enorme foice prateada. Ele se aproxima até que possamos conversar. Mais uma vez, ouço sua assustadora voz de trovão. “Boa Noite, Athos”.

“Boa noite, Vibrador”.

“Está pronto para cumprir sua parte do Pacto?”

“Te derrotar? Claro que sim, mas, por precaução, meu bolso está recheado, como prometido”.

“Ótimo. Sua família agradece. Mas antes, quero que saiba que a proposta ainda está de pé. Se quiser, ainda pode se juntar à Irmandade. Não precisa morrer hoje”.

“Eu pensei no caso e tenho umas perguntas”.

“Pois diga”.

“A Irmandade te obriga a se vestir assim ou é só mau gosto, mesmo? E o seu nome, eles também te obrigam a usá-lo, né? Tenho medo que me obriguem a me vestir de forma tão ridícula ou a me apresentar como Liquidificador ou Refrigerador, caso eu entre pra sua Irmandade. Eles fazem isso com todos os membros ou você é o idiota oficial?”

“Vejo que já tomou mesmo sua decisão. Mande lembranças aos Pecados”. Ele diz, fazendo a lâmina e os olhos brilharem rubros simultaneamente. De repente, ouço os zumbidos cortando o silêncio da rua e me viro para fitar um enxame de vespas sobre seu controle vindo em minha direção. Mas desta vez eu estava preparado. O sobretudo salta de meus ombros, impulsionado pelos tentáculos que emergiam de um símbolo desenhado previamente em seu interior, com fita adesiva, e engloba a maior parte do enxame, como se fosse uma rede de sombras. A pesada peça de couro cai no chão, se mexendo enquanto os insetos tentavam fugir e iam sendo esmagados pelos tentáculos. Uma das poucas vespas restantes ainda voa perto de mim e com um movimento rápido eu a pego no ar, esmagando-a com a mão livre.

A grande vantagem dos tentáculos invocados previamente era que o Ceifador não podia interferir em sua invocação, como fizera em nosso primeiro encontro. A grande vantagem de usar símbolos previamente desenhados era que eu não precisava ficar me concentrando no desenho feito com sombras que eu normalmente utilizava. Isso me permitia concentrar em outras coisas e deixava minha mente livre para trabalhar mais rápido. Como exemplo, me permitia sentir a rápida aproximação de meu adversário que pensava se aproveitar de minha distração com o enxame. “Gladius Tenebrae”.

Me viro rapidamente, girando o corpo e segurando a espada de trevas com as duas mãos, para reunir força suficiente para desviar o golpe vertical descendente que o enorme assassino me desferia pelas costas. Quando sua lâmina curva se enterrou no chão sem me acertar, desferi um golpe na altura de seu pescoço, aproveitando que ele se encontrava curvado devido ao último ataque e fazendo-o soltar o cabo da foice para se defender com uma de suas manoplas.

“Devia ter trazido seus amigos pra te ajudarem”. Digo, saltando para trás e me afastando de meu adversário, como precaução, ao mesmo tempo em que uso minha espada para fazer um pequeno corte em minha mão esquerda e, com um movimento rápido, jogo algumas gotas de sangue na direção dele.

“Eu trouxe um exército deles”. Ele diz, arrancando a foice do chão e empunhando-a.

“Insetos não contam. Brachi Abyssus!” Eu ergo minha mão chifrada para invocar os tentáculos do grande símbolo no qual ele estava próximo. Ele faz o mesmo, mas já caíram em minha armadilha. Cada tentáculo que eu já havia invocado até hoje possuía uma certa força e autonomia, porém, era suficiente apenas para que atendessem meus desejos. Isto me fez pensar e chegar à conclusão que quanto maiores e mais fortes os tentáculos, mais autonomia eles teriam. Os tentáculos que emergiram do grande símbolo desenhado no chão, onde eu havia jogado meu sangue e último componente místico, eram enormes e possuíam autonomia suficiente para não obedecer a ninguém. Diante daquelas invocações, a mão chifrada serviria apenas para que eu fosse ignorado por eles, estando teoricamente protegido. Quando meu oponente interferiu na invocação, como da outra vez, os tentáculos ficaram confusos, atacando qualquer um nas proximidades. Infelizmente, para meu adversário, era ele quem se encontrava mais próximo.

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Eu não esperava tentáculos daquela magnitude. A mão chifrada funcionara, mas foi totalmente inútil, pois o garoto já estava afastado. Me esquivei do primeiro tentáculo, saltando para o lado e usei a Pecadora para desferir um poderoso golpe, destruindo-o, porém, me tornando um alvo fácil para o segundo, que se enrolara em mim. Inicialmente, eram três e tinham a espessura de um tronco de árvore e quase a mesma altura. Quando me agarraram, deixei cair a Pecadora e saquei minha adaga ritual. Por mais poderosa que fosse a arma pessoal de mestre Asmodeus, ela precisava de espaço para ser empunhada, e espaço era algo que eu não tinha contra toda aquela escuridão sólida que se enrolava em mim e me erguia no ar, para me esmagar. Eu lutei contra o frio que me queimava e o ar que me faltava, me esforçando ao máximo para não ser constrito pelas invocações tenebrosas de meu adversário. Após alguns segundos de luta, finalmente destruí este segundo tentáculo, que me soltara no ar. Antes de chegar ao chão, porém, a terceira e última massa de trevas me agarrara pelo pé.

“Vinde à mim, lâmina dos pecados!” Invoquei Pecadora que estava caída no chão, fazendo-a saltar até minhas mãos, me permitindo combater a monstruosidade negra que se enrolava em mim e me erguia no ar. Com o primeiro golpe, cravei a lâmina curva da pecadora na massa tenebrosa que formava o gigantesco tentáculo, depois apenas puxei o cabo com força, rasgando a invocação e destruindo-a. Caí rolando no chão, para amortecer minha queda e passei a lança no símbolo desenhado no chão, para que não fosse mais utilizado.

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Eu ainda o observava lutando contra os enormes tentáculos, com um sorriso no rosto, apesar de saber que a luta estava longe do fim, quando uma sensação de perigo fez-me virar para trás rapidamente e entender o que o Ceifador disse sobre ‘exército’. Atrás de mim havia cerca de uma dezena de pessoas, sendo que um deles me agarrara e tentara me morder assim que me virei. Reagi rapidamente, me soltando e escapando da mordida e seu hálito fétido apenas para perceber que todas aquelas pessoas estavam mortas! Cadáveres ambulantes e fedorentos, alguns com as gargantas partidas, outros com buracos de tiros no peito, mas todos com uma marca entalhada na carne da face e o fedor peculiar de morte e putrefação.

Eles começavam a me cercar, para me atacarem por todos os lados, então tirei duas das cartas de baralho de meu bolso, joguei na direção deles e invoquei os tentáculos a partir dos símbolos que desenhei nelas após apagar as figuras originais. Como serpentes, livres de superfícies fixas, os tentáculos se enrolavam e prendiam os zumbis, reduzindo seu número para que eu os combatesse com a espada, decapitando-os, desmembrando-os e partindo-os ao meio, porém, eles não sentiam dor e já estavam mortos, continuando a lutar mesmo após ferimentos mortais. Eles me cercaram, se arrastando no chão, com membros faltando e tripas putrefatas penduradas e espalhadas pela rua. Distribuí golpes com a espada freneticamente, para acabar com aquela cena de horror grotesca. De repente, sinto um enorme perigo eminente e me esquivo girando meu corpo para o lado, fazendo com que o Ceifador acertasse o último zumbi, ao invés de mim, cortando o resto do morto-vivo ao meio. Aproveitei o erro de seu ataque e o giro de meu corpo para desferir um golpe rápido com a lâmina de trevas na lateral de seu abdômen, porém, encontrei uma resistência tão rígida que não acreditei ter conseguido alcançar sua carne.

Ignorando meu ataque, ele ascendera sua arma, me atacando desta vez com a lança, tentando rasgar meu peito, porém, não fazendo mais do que um arranhão, ao ser detida pelos tentáculos enrolados em meu corpo, por baixo da blusa, formando uma verdadeira armadura de trevas. Aproveito sua surpresa e proximidade para estocar seu pé, perfurando-o com a ponta de minha espada sombria. Ele expressa uma careta de dor e desce novamente a lâmina da foice num arco diagonal que por pouco não me parte ao meio. Infelizmente, meu salto para trás não fora rápido o bastante e sinto a foice me fazendo um novo corte e destruindo os tentáculos que protegiam meu corpo. Tropeço em alguns pedaços dos cadáveres, que prefiro ignorar quais eram, e perco o equilíbrio após o último ataque de meu oponente.

Logo após me desferir este golpe, ele larga rapidamente a foice e parte pra cima de mim com um golpe de corpo, agarrando meu pulso para evitar que eu usasse a espada. Meus pés saem do chão enquanto sou arremessado por aquele gigante. Ainda no ar, percebo os faróis do carro vindo pelo cruzamento com a rua onde lutávamos. Instintivamente, os tentáculos sob minhas mangas, invocados para protegerem meus braços, se estenderam rapidamente até os galhos de uma das árvores, aproveitando meu corpo já impulsionado e me tirando da direção do veículo, que freara bruscamente, para evitar o atropelamento que, por pouco não definiu o resultado da luta.

O homem de dentro do carro, saíra para ver o que acontecera, não sabendo do perigo em que estava se metendo. O Ceifador já empunhava novamente sua foice e me observava. Seu pé sangrava e eu percebia que sua velocidade de locomoção estava comprometida, mas minha lâmina de trevas não era muito efetiva, pois seu corpo estava bem protegido. Apertei o cabo de madeira que por pouco não escapara de minha mão com o susto de quase ser atropelado. Eu precisava mudar de tática.

“Que porra é essa?” Disse o assustado homem de vinte e poucos anos e peso um pouco acima do ideal, após ver o Ceifador, que virara o rosto em sua direção e assoprara, fazendo sair de sua boca uma fumaça escura que logo circundou o infeliz motorista que foi perdendo as forças até cair no chão, grogue, suando muito e com a pele do rosto cheia de irritações avermelhadas. Não sei o que ele fez, mas é como se aquela fumaça fosse uma nuvem de pestilência, que provocara alguma enfermidade no pobre transeunte. Felizmente, para mim, isto me deu tempo para reorganizar os tentáculos invocados sob minhas roupas, recriando minha armadura de trevas e me preparando para usar meu último trunfo. Teria de atraí-lo até o desenho no muro. Saquei as cartas que restavam em meus bolsos e me preparei. Tudo tinha de dar certo. Não podia falhar.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:19

Parte 44: Destruição

“Ei, Computador! Você deve estar com uma puta dor no pé, né?” Corro, circundando-o para passar por ele e ir até o símbolo desenhado no muro, mas ele parte pra cima de mim, saltando com a força da perna ilesa e me desferindo um golpe horizontal com a foice, me obrigando a me jogar no chão, rolando, para escapar e me levantar rápido o suficiente para continuar correndo. Um segundo golpe, desta vez vertical, quase me atinge, porém, o ferimento no pé do Ceifador atrasa sua investida, impossibilitando-o de me alcançar. Jogo as cartas para trás e invoco as ‘serpentes’ de trevas para entretê-lo. Elas se enrolam nele, mas não duram muito, sendo logo destruídas, porém, me dando tempo para alcançar a área da rua que eu desejava.

“Computador. Com puta dor. No pé. Sacou?” Ele me olha, mantendo a distância, como se soubesse que eu tramava alguma coisa. Eu aguardo, afinal de contas, ele é o assassino, então é de se esperar que ele seja o mais interessado na luta. Ele me observa por alguns segundos e, de repente, desaparece, no mesmo instante em que minha mente explode com a intensa sensação de perigo, me forçando a saltar para o lado, rolando no chão, me virando e parando agachado a tempo de ver o segundo golpe se aproximando horizontalmente. Desta vez, me esquivei saltando com toda a força de minhas pernas, me jogando para frente, me aproximando ao invés de me afastar do inimigo e desferindo um potente chute ascendente em seu queixo, forçando-o a recuar devido ao impacto. Eu me aproximo um pouco mais do muro, enquanto me distancio de meu oponente.

Ele rapidamente se recompõe e arremessa a lança em minha direção, fazendo-me saltar para trás, me apoiando na superfície vertical do muro, enquanto os tentáculos remanescentes em meu corpo me fixavam naquela posição. A lança não me acertara, mas sua lâmina se encravara no muro, fazendo-me temer pelo símbolo desenhado nele. Rapidamente eu a arranco de onde estava, juntamente com o papelão que cobria o símbolo. Felizmente, não estava danificado. Uma sensação me faz desviar minha atenção novamente para meu oponente que desta vez jogara sua adaga em mim. Eu mal senti sua lâmina destruindo um dos tentáculos que formavam minha armadura e cortando superficialmente minha pele antes de cair no chão, pois uma sensação de urgência me tomava agora que o Ceifador vira o símbolo e descobrira meu plano. “Brachi Abyssus!”

Ele ainda tentara escapar, mas não foi rápido o suficiente. O gigantesco tentáculo emergira como um tiro na direção de meu oponente, agarrando-o e se enrolando, me dando algum tempo para me concentrar em minha espada tenebrosa. O sentido do feitiço era me armar com as trevas presentes em minha alma, mas não precisava ser necessariamente uma lâmina. Me concentrei, enquanto reunia as trevas ao meu redor e torcia para que o tentáculo segurasse meu adversário por tempo suficiente. Eu podia ouvir minha invocação batendo meu oponente contra o chão, enquanto este procurava lutar com as próprias mãos. Quando percebi que estava pronto, me impulsionei com toda a força de minhas pernas e dos tentáculos em meu corpo e saltei na direção do Ceifador que soprara novamente aquela nuvem de pestilência, para enfraquecer e destruir a enorme massa de trevas que eu invocara.

Ele mal vencera o tentáculo e já recebera o potente golpe da enorme marreta de trevas em sua face, jogando sua máscara em forma de crânio longe e fazendo-o cair apoiado nos braços e cuspindo sangue. Eu rolei no chão, me levantando rápido e já me preparando para outro golpe, não dando tempo pra ele se recuperar do atordoamento provocado pelo primeiro. Girei a marreta, erguendo-a sobre minha cabeça e a desci, com toda a força que eu tinha, nas costas do homem caído à minha frente, que urrou de dor. Seus braços não agüentaram o impacto que jogou o corpo ao chão. As pernas não chegaram a saber se deviam tentar agüentar, pois quando a coluna se partiu, elas perderam sua conexão com o cérebro e também cederam.

Se apoiando novamente nos braços, ele me lançou um olhar incrédulo e raivoso, enquanto sangue escorria de sua boca. Estava acabado. Desfiz a arma de trevas, guardei o cabo de madeira e tirei do bolso uma folha de papel dobrada e um isqueiro. Eu a desdobro, acendo o isqueiro e começo a queimá-la. “Aqui estava minha parte do Pacto. Meu segredo continuará sendo um segredo. Eu te derrotei. Te destruí. Espero que cumpra o acordo”.

Solto a folha incinerada, caminho até o muro, onde pego a adaga caída no chão, depois apanho meu sobretudo e começo a caminhar na direção de minha casa. Lóki voa até mim, para me acompanhar, mas então eu me viro novamente para o homem caído no chão e aponto para os zumbis despedaçados. “Vou chamar uma ambulância pro cara daquele carro. Peça pro seu pessoal limpar essa sujeira antes dela chegar. Não quero que isto me crie mais problemas”.

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Sua espada não foi suficiente para me ferir, me fazendo apenas um pequeno corte, não conseguindo vencer a resistência conjunta do Manto da Noite, do kevlar de minha vestimenta e do poder que atuava em meu corpo vindo das Manoplas da Fúria, de mestre Soneillon. Ele percebera isto e mudou sua estratégia rapidamente. Era um rapaz realmente incrível. Desde o término dos treinamentos, desde a disputa pelo cargo de Avatar dos Sete Pecados, há mais de quinze anos, eu nunca havia sido derrotado. De repente, estava eu caído no chão, sentindo dores, porém, mais preocupado com as dores que eu não sentia. Como ele mesmo disse, eu não tinha sido apenas derrotado, eu fui destruído. Após tanto tempo, devido a minhas preferências, eu voltava a ter contato com dois pecados que há muito eu negligenciava. Orgulho e Luxúria cediam lugar para Ira e Inveja. Minha parte do Pacto seria cumprida, mas a Irmandade não ficaria feliz por isso e os Pecados muito menos. Peguei o celular, para pedir ajuda.

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A derrota do Ceifador fora um choque. O Avatar dos Sete Pecados, o maior assassino da Irmandade, o filho da mãe que me derrotou na final da disputa pelo cargo, o desgraçado a quem eu jurei derrotar. Ele, logo ele, fora destruído. Mesmo depois de passar o dia todo se preparando para aquela luta, criando mortos-vivos, invocando enxames, preparando sopros de pestilência, rogando pragas... A chama que queimava dentro dele parecia ter se apagado. Aquele maldito garoto me privara de meu juramento. Mas se o garoto o derrotou, quer dizer que é melhor que ele. Então, se eu o derrotar, talvez eu possa assumir o cargo. Ainda havia esperanças para conquistar o que devia ter sido meu. Eu seria o próximo Avatar dos Sete Pecados. Carrasco era o nome que os inimigos da Irmandade aprenderiam a temer. E minha ascensão certamente seria abençoada pelos mestres Sammael e Cimeries, Ganância e Inveja Encarnadas.

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Eu venci! Minha vontade era sair gritando, mas nem a frustração de precisar conter a emoção conseguia sobrepujar minha felicidade. Após chegar em casa, guardei a adaga, como um troféu por minha vitória, e me coloquei de vigia, disposto a passar a noite em claro. Ceifador e as outras duas presenças mais próximas a ele foram embora, porém, me concentrando, podia sentir, além de Lóki e minha mãe, mais quatro diferentes sensações distantes, quase no limiar de meu alcance. Não sentia um pingo de sono. A adrenalina corria a toda, em minhas veias. Eu estava vivo! Mais vivo do que nunca! E inteiro! Vesti o sobretudo e amarrei o lenço no rosto. Antes de mesclar as sombras em minhas vestes, reparei nos danos que minhas roupas vinham sofrendo. Resolvi marcar um dia para sair com Graça para fazer compras. Aposto que ela iria adorar dar palpites sobre meu guarda-roupa. Mando Lóki ficar e vigiar o apartamento, enquanto eu iria averiguar. Desço o prédio e me dirijo na direção da presença mais próxima, permanecendo sempre oculto sob as sombras dos prédios e árvores no caminho.

Era um homem branco, com cabelos pretos, vestindo calças jeans, camiseta e jaqueta. Estava montado em uma moto e fumava. Parecia vigiar o local, pois não apresentava a impaciência de alguém que espera. Tento me aproximar, dando uma grande volta, para continuar oculto. Uso os tentáculos para saltar muros e me locomover por telhados e árvores, chegando o mais próximo possível. Ele continuava em sua vigília. De repente, seu celular toca e ele o atende.

“Oi... Por aqui continua tudo quieto... Ok, falô”.

Ele desliga o telefone e dá a partida na moto, acelerando e saindo dali. Penso em segui-lo, mas continuo onde estava, apenas observando ele sumir de meu campo de visão. Como precaução, decoro a placa da moto. Acompanho-o com o sentido místico e sinto-o parando algumas quadras dali. Vou até lá apenas para encontrá-lo parado novamente, vigiando. Ao que parece, tais pessoas estão coordenadas para vigiar essa área e algo me diz que, desta vez, é devido ao vampiro que matei. Eles estavam chegando perto. Eu precisava fazer algo para despistá-los. Volto para casa, que continuava normal. Anoto a placa da moto, para não me esquecer, proíbo Lóki de sair, para não correr o risco de ser visto, e mando-o ficar de vigília, enquanto eu tentava dormir um pouco. Eu venci!

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Felipe falou com o porteiro e esperou até ter a permissão para subir ao apartamento que desejava visitar. Tomou o elevador e subiu, vestindo roupas sociais escuras e cantarolando a melodia de um rock internacional antigo, esboçando a mesma preocupação que teria ao visitar um amigo ou parente próximo. Apesar da noite quente, ele carregava um sobretudo marrom, nas mãos e, em nenhum momento, demonstrava medo ou hesitação, mesmo estando desarmado e prestes a entrar num covil de monstros. Quando chegou ao andar que desejava, tocou a campainha e vestiu o sobretudo, enquanto a porta era aberta. O homem que o atendera era alto e forte, com o queixo quadrado, cabelos pretos curtos e olhos negros que fitavam-no como se ele fosse um verme. Estava vestido com um sobretudo preto, que Felipe podia jurar estar escondendo armas. O frio que emanava de dentro do apartamento fez com que o recém-chegado enfiasse as mãos nos bolsos, antes de entrar.

A decoração era bela e deprimente, num estilo gótico e sombrio, porém, com incoerências que fugiam totalmente daquele padrão, como a parede laranja, o sofá verde-limão ou o quadro modernista, que se mostravam deslocados naquele ambiente. Felipe já sabia o caminho até o escritório, caminhando até o aposento, sendo acompanhado pelo homem que permitira sua entrada. A sensação de estar sendo observado, assim como o calafrio que percorrera sua espinha, denunciava o tipo de ambiente em que estava: Um local assombrado, onde o Mundo dos Mortos tocava o Mundo dos Vivos.

O homem que o esperava sentado atrás da bela mesa de madeira possuía aparência velha, porém, forte e vigorosa. Os cabelos brancos e as rugas indicavam experiência, enquanto sua postura indicava nobreza e poder. Vestia um belo terno preto, com camisa também preta e gravata vermelho-sangue. O homem sorriu ao ver Felipe chegar e apontou uma cadeira para que ele se sentasse. Ao lado dele, estava uma mulher pálida e magra, com longos cabelos pretos e vestindo um taileur com risca de giz. Ela apanhou algumas pastas com papéis e se retirou, fechando a porta e deixando Felipe sozinho com o velho.

“O que o traz aqui, Felipe?”

“Vim conversar com meu senhor e trazer-lhe algumas notícias”.

“Espero que sejam boas, pois não tolero que me façam perder tempo”.

“Está sabendo da morte do Saulo?”

“Sim, fiquei sabendo. Diogo mantinha contato com ele”.

“Soube que o Lorde da Noite ficou uma fera”.

“E com razão, não? Mataram o caçula dele”.

“Ouvi dizer que ele mandou os Cicatrizes atrás do assassino”.

“Cicatrizes... Eles têm boa fama. Mandando-os atrás do assassino de seu filho, manteria a ordem entre os Anunnaki e a fama de seus cãezinhos. Eu já previa essa reação”.

“Mas sabe o que é estranho? Andrei Cicatriz está procurando esse tal assassino sozinho, com a ajuda de servos do Lorde. O senhor não acha estranho? Porque o Matador está investigando, quando se tem o Rastreador para isto?”

“Sim, é estranho... A não ser que não se tenha mais o Rastreador”.

“Genial dedução, meu senhor. E o que teria acontecido com o Rastreador?”

“Provavelmente, rastreou o que não devia. Deve ter encontrado o assassino e o transformado em seu próprio algoz”.

“Isto seria terrível para a reputação do Lorde da Noite”.

“Nem me diga. E com todo o trabalho que tive para colocá-lo no poder... Eu sabia que ele era um idiota e acabaria fazendo algo de errado. Eu devia ter escolhido outra pessoa para posar de governante”.

“Mas quem? O senhor é o único que pode realmente governar os Anunnaki desta cidade. Chega de controlar a tudo e a todos pelas sombras. O falso Lorde da Noite deve ser substituído, antes que a ordem seja perdida, meu senhor”.

“Cale-se, servo! Há décadas que eu manipulo os Lordes da Noite, me fazendo de aliado dos governantes, quando sou eu mesmo o regente supremo. Não há ninguém melhor do que eu para decidir quando devo ou não me revelar”.

“Perdão, meu senhor. Desculpe este pobre servo, pois sou apenas um ignorante que não consegue compreender toda a extensão de sua genialidade”.

“Analisarei a situação. Por enquanto, agradeço seus serviços. Retire-se, Felipe”.

“Sim, meu senhor”. Ele disse, se levantando e saindo. No quarto ao lado, viu o homem que lhe atendera, agora sem o sobretudo, vestindo calças jeans e camiseta, socando vigorosamente um saco de areia. Passando pela sala, observou a mulher, que vira anteriormente, conversando sozinha, como se estivesse acompanhada por entidades que ele não conseguia enxergar. Sentiu um calafrio na espinha, quando ela o fitou e pediu licença para sua companhia invisível, se levantando para abrir a porta.

Ao sair do frio apartamento, retirou o sobretudo, sentindo o calor do Mundo dos Vivos novamente. Chamou o elevador para ir embora. Mexera sua peça. Eurípedes, um vampiro ancião e importante aliado do misterioso Lorde da Noite, tivera seu incentivo para que agisse. O monstro acreditava ser muito mais do que era e criava mentiras para que pudesse acreditar nelas e satisfazer sua megalomania. Acreditava controlar o verdadeiro Lorde da Noite e, agora que Felipe lhe sussurrara as palavras corretas, talvez o velho procurasse formas de derrubar o Lorde. Caso falhasse, alguns vampiros seriam destruídos, incluindo seu poderoso e insano ‘senhor’. Caso conseguisse, o resultado não seria tão diferente. Alguns vampiros seriam destruídos, porém, desta vez, estaria incluso o Lorde da Noite, fazendo com que Eurípedes ascendesse à liderança dos vampiros da cidade e, consequentemente, ampliando ainda mais a fama e reputação de Felipe entre os outros, visto que ele manteria contato com o novo Patriarca Anunnaki, além de ser o responsável pela queda do atual. Felipe sorriu, enquanto tramava suas próximas jogadas, como se os monstros da cidade fossem meras peças em um gigantesco tabuleiro sinistro. Saiu do prédio e entrou em seu carro tranquilamente. Tinha companheiros de quem cobrar favores e boatos a espalhar entre alguns vampiros que conhecia. Voltou a cantarolar, mesmo sabendo dos perigos que aquele jogo sombrio escondia.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:20

Parte 45: Mulheres

Vou para o colégio ainda preocupado, tentando prestar atenção para ver se não estava sendo seguido. Peço para Lóki ficar de olho em Luna e rezo para que não ocorra nada com minha mãe. Espero que o Ceifador cumpra sua parte do Pacto. Depois da derrota humilhante que sofri, consegui dar a volta por cima e o venci. A única forma que pensei para provar a ele que eu havia vencido era subjulgando-o. Não conseguiria simplesmente imobiliza-lo ou prende-lo, por isso tive de usar a violência, mas aposto que fazendo alguns Pactos com uns demônios, ele consegue voltar a andar. Torço para que ele realmente cumpra sua palavra, mas me sinto um ingênuo por pensar nisso. O professor fala, enquanto eu finjo prestar atenção. Não consigo me concentrar nas aulas, devido a minhas preocupações e isto faz com que o tempo se arraste, parecendo nunca passar.

“Aconteceu alguma coisa?” Daniele pergunta, durante o intervalo.

“Não, por quê?”

“Deixa eu ver... Você faltou todas as aulas de ontem, hoje apareceu com um curativo na testa, além de parecer preocupado e apressado... Deve ter acontecido alguma coisa”.

“Não é nada, não. Esse curativo é porque eu caí e me cortei”.

“Athos, você tem dinheiro, aí?” Luna diz ao me encontrar. Como ela nunca me procura durante o intervalo, foi bem direta. Ela só me encontraria se precisasse de algo.

“Por quê?”

“Eu esqueci o meu e to com fome. Depois eu te pago”.

“Comer a comida dessa cantina dá câncer de estômago”.

“Ah, não, Athos, por favor, eu não comi nada lá em casa”.

“Tadinha, Athos, larga de ser mau”.

“Ta com pena? Leva pra você. Toma, mas depois não diz que eu não avisei”.

“Brigado, maninho lindo do meu coração!” Ela diz me dando um beijo e sumindo novamente entre os inúmeros estudantes que transitavam pelos corredores.

“Quantos anos ela tem?”

“Treze. Idade terrível. Vou passar alguns anos bem difíceis, aturando-a”.

“Ah, aposto que você adora ela”.

“É, mas não conta pra ninguém. Tenho que manter a pose de irmão mais velho e malvado”.

“Hahaha, ta bom. E essa aliança?”

“Hã? Ah, é. De namoro”.

“Que gracinha. Começou quando?”

“Já faz mais de uma semana”. Digo, me lembrando daquela que havia sido uma das noites mais estranhas de minha vida.

“Vai levar ela no churrasco?”

“Acho que sim. Ela disse que seria uma boa conhecer meus colegas”.

“Legal. Qual o nome dela?”

“Graça”.

“Hmm, dá pra fazer vários trocadilhos”.

“Como se com ‘Athos’ fosse difícil”.

Passo o intervalo criando trocadilhos para nomes, com Daniele e relembro da atração que ela provocava. Seu corpo era belo e bem desenvolvido e ela possuía uma beleza exótica, devido a seus cabelos vermelhos e os olhos de cores diferentes, um verde e o outro azul. Porém, havia algo mais. Ela tinha um ar de garota selvagem, disposta a tudo. Era uma garota realmente interessante, por quem, praticamente todos os caras do colégio, se interessavam. Eu mesmo ‘arrastei uma asa’ pra ela durante algum tempo, depois de passar por minha fase de adaptação. E pensar que tudo pelo que estou passando começou com ela e sua idéia de invocar um espírito, seguido pelo atropelamento do qual a salvei e que teria sido provocado por Khestalus, o demônio que mais tarde surgiu dizendo ser meu verdadeiro pai. Ela estava na origem de tudo o que estava me ocorrendo e, ao me dar conta disso, volto a sentir a atração que antes sentia por ela. Toco a aliança e começo a girá-la em meu dedo, me lembrando do que ela significava, mas então esbarro no anel negro e penso no que ele representava. O sinal anunciando a próxima aula espanta meus pensamentos, me dando outra coisa para me concentrar.

“Quantas horas por dia vocês estão estudando? Porque seu concorrente está estudando oito horas por dia, além das que ele passa no colégio. O que diabos vocês fazem entre meia-noite e seis da manhã? Vão estudar, vagabundos!” Diz o divertido professor de Biologia que vivia nos lembrando da proximidade do vestibular. O que eu faço entre meia-noite e seis da manhã? Nem queira saber...

Volto para casa. Luna já havia esquentado o almoço, mas, antes de comer, fui fazer alguns telefonemas. Precisava saber se estava tudo bem com minha mãe e Roxane devia querer notícias sobre mim.

“Alô, mãe?”

“Oi, Athos. Aconteceu alguma coisa?”

“Não, só liguei pra saber como você estava”.

“Estou bem. Vocês já almoçaram?”

“A Luna já, eu ainda vou comer, e você?”

“Eu já estava saindo pra ir almoçar”.

“Ah, então vamos almoçar, né? Um beijo”.

“Espera, meu filho. Foi bom que você tenha ligado. Sua tia Ana Paula me ligou dizendo que a Bárbara piorou. Você lembra que ela amanheceu doente, no domingo?”

“Lembro sim”.

“Pois é, eu estava pensando em fazer uma visitinha pra ela hoje, depois que eu chegar do trabalho. O que você acha?”

“Pode ser. Eu falo pra Luna aqui e a gente se arruma quando você estiver chegando”.

“Então está combinado. Um beijo, meu filho. Tchau”.

“Tchau”. Após desligar, faço uma nova ligação, desta vez para Roxane, cumprindo o que eu havia lhe prometido.

“Alô”.

“Roxane?”

“Athos?”

“Eu mesmo”.

“Nossa, que bom que ligou! E então, o que aconteceu? Onde você está?”

“Estou em casa. Deu tudo certo, eu consegui. Fiz um acordo e ele vai parar de pegar no meu pé”.

“Como assim, acordo? Falei com meu pai sobre eles e ele me disse que essa irmandade é composta por gente do pior tipo possível. Toma cuidado, não confie neles”.

“É, eu sei, mas acho que vai ficar tudo bem. Olha, hoje não vai dar pra eu ir aí na sua casa, porque uma ‘prima’ minha ta doente e vou fazer uma visita pra ela, mas podemos marcar pra sexta?”

“Podemos sim”.

“Ok. Qualquer coisa eu te ligo”.

“Ta. Um beijo. Tchau”.

“Outro. Tchau”. Aproveito que estou pendurado no telefone e ligo para Graça também. Há tempos que não nos falávamos. Ela devia estar nervosa.

“Acabei de ganhar um real. Adivinha por que”. Ela diz, ao atender o telefone.

“Hein? Sei lá. Por quê?”

“Porque você sumiu. Meu irmão apostou comigo que você não ligaria até sexta-feira”.

“Desculpa, é que aconteceu um monte de coisa, uma encima da outra. Quando consegui tomar um ar, já estava no meio da semana”.

“Sei...”

“É sério. E então, vai comigo no churrasco, sábado?”

“Vou, né? Você acha que vou te deixar sozinho junto com um bando de mulher bêbada?”

“Hehehe, então você vem aqui pra casa depois do almoço e a gente vai junto, ok?”

“Ok”.

“Lembrando que tem piscina, lá”.

“Nossa, um bando de mulher bêbada e de biquíni. Você não está me convidando, está me intimando a ir”.

“Hehehe, você captou a mensagem. Então, nos vemos no sábado”.

“Ta bom”.

“Um beijo. Te amo. Tchau”.

“Beijo. Também te amo. Tchau”.

Falar com a Graça sempre deixava meu dia melhor. Nem parecia que eu ainda estava todo estropiado por ter lutado recentemente com um poderoso assassino que tentara me matar. O dia parecia até ter ficado mais claro e bonito. Não sei como ela fazia aquilo, mas ela tinha o poder de me deixar despreocupado, alegre e, por falta de expressão melhor, gay! Droga, eu sorria feito um imbecil, suspirava e começava a achar tudo lindo! Pelo menos eu não estava usando apelidos carinhosos ridículos ou adjetivos no diminutivo. Ainda. Putz, eu disse até ‘eu te amo’...
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