ARCO 1 – O FESTIVAL DOS OSSOS
Ato 1, Cena 1 – A Praça Central de Endost
A praça do povoado de Endost estava tomada por mercadores e transeuntes. Tamanho movimento só podia indicar uma coisa, o Festival dos Ossos . Em todo lugar os comerciantes ofereciam mortalhas das mais variadas cores, tipos e tamanhos. Apesar de estar próximo ao final do inverno, a neve ainda não tinha cedido, por isso as pessoas usavam casacos confeccionados com a pele de leberneiros. Crianças corriam por todos os lados disputando acirradas guerras de bolas de neve, enquanto isso, os adultos se aqueciam com uma escaldante bebida vermelha viscosa, o rum sangue.
Próximo aos boêmios, conversando animadamente e bebendo o seu décimo copo da bebida, estava o anão Galean Tiadore. Um guerreiro de fama duvidosa, que tinha abandonado Vulcana por questões pessoais e que havia chegado a Endost a menos de três dias. Apesar da enorme quantidade de rum sangue ingerido, ele estava quase sóbrio. Galean havia apreciado o gosto da bebida, que lembrava a cerveja anã, por isso decidirá por tomar mais um gole.
- Amigo....Hic....Me vê mais um desses que não deu nem pra ... Hic... Esquentar o corpo
Ao colocar a mão em seus bolsos, o anão percebeu que estava sem ouro e por isso mudou a abordagem.
- Hic....Acho que to semmm....Dinheiro....Hic....Sabem de algum lugar para eu beb....hic...digo, trabalhar ? Sou um grande guerreiro ...Hic....Certa vez eu................
Alguns minutos depois, ou talvez horas, afinal Galean não estava certo sobre estes detalhes, um dos homens lhe indicou a estalagem do Lobo Cinzento. Segundo as conversas no povoado, neste lugar estavam os responsáveis pelo grupo de exploração das ruínas da mina de ferro. Aproveitando a deixa, e tomando uma dose de rum sangue, que ele não sabia se era sua, Tiadore se despediu de seus “companheiros” e partiu em direção a estalagem, confiando em seu senso de direção para se guiar.
Na praça se destacava uma imponente mansão, uma das primeiras construções do vilarejo e lar da única família élfica de Endost, os Da´Hell. A casa chamava atenção pela estátua do ceifador que guardava a sua entrada e pelo exótico jardim que podia ser visto pelas aberturas da grade. Um observador mais atento também vislumbraria um mausoléu neste lugar. De tempos em tempos, pessoas entravam e saiam da mansão, levando ou trazendo caixotes repletos de mercadorias.
Parado a frente da mansão se encontrava Cloud Amarant, que observava a residência dos Da’Hell. A família élfica sempre havia sido próxima aos Amarant, e o nobre de Scarlatte precisava de aliados para o que planejava. Ele pensava se seria melhor adentrar na mansão agora sem ser anunciado ou se esperaria um momento mais oportuno, afinal o patriarca Efendor Da’Hell era conhecido por seu respeito à etiqueta.
No lado oposto da praça se erguia o salão comunal onde eram realizadas as reuniões do Conselho dos Justos, mas que nesta época estava convertido em um dormitório. Na sua entrada, um homem de porte avantajado, calvo e de olhos castanhos, tentava acomodar os viajantes. Perdido em seus pensamentos, o xerife Julian Corazon se lamentava pelo inverno rigoroso que não permitia a Endost alojar os visitantes em tendas.
Outro ponto movimentado era o templo da Foice e da Lança, que havia assumido um tom fúnebre devido às mortalhas negras que recobriam o seu interior. Pessoas das mais variadas posses observavam com atenção os detalhes da construção e prestavam homenagens aos símbolos do deus morto. Na parte mais interna, um casal de elfos de vestes sacerdotais escuras conversava animadamente com uma mulher que ostentava o símbolo de Sargan. A baixa estatura, a pele morena, os olhos azuis e os cabelos dourados de Heleonora Delacros contrastavam com a altura, a pele pálida, os longos cabelos e olhos negros dos irmãos Morgauld e Efendra Da´Hell.
Kyokai Yamaha estava no meio do templo em posição de reverência. Ele executava suas preces e demonstrava respeito às divindades do Sol e da Morte, mesmo não sendo elas reconhecidas pelo seu povo. O wenhajin orava em seu idioma natal, compenetrado, atraindo atenção tanto por seu enorme porte físico como pela dedicação aos ritos religiosos. O akasha o havia guiado até Endost e a sua intuição lhe dizia que o seu caminho se revelaria antes do final do Festival dos Ossos. Enquanto tal iluminação não se manifestava, o monge conhecia o povoado e aprendia sobre a sua história e tradições, tomando nota de tudo que achava interessante no seu diário pessoal.
Depois de alguns minutos, o monge se levantou e passou a caminhar pelo templo, de maneira calma e serena, admirando a sua decoração. Os seus pés, mesmo metidos em sandálias de madeira, não faziam barulho algum. Por fim, Yamaha depositou cinco peças de ouro no altar principal do santuário. O seu ato foi notado pelos sacerdotes e o wenhajin podia ver o sinal de aprovação em suas faces, fato que ele encarou como uma permissão para se aproximar e conversar.
- Bom dia. Que os deuses sejam louvados – disse ele, tendo de olhar para baixo para poder fitar os três – Eu sou um viajante, como muitos por aqui nesta época, e estou curioso sobre o festival. Eu soube de lendas no caminho, vocês poderiam me contar quais são verdadeiras?
- Todas as lendas têm verdades meu caro, e não cabe a nós desmenti-las – respondeu a serva do deus sol.
- O que sabemos sobre a lenda é o que foi preservado por nossos antepassados, um texto simples e dúbio que é conhecido como o conto do Festival dos Ossos – completou de modo fúnebre Morgauld.
- O original se perdeu nos primeiros anos de Endost, mas o seu conteúdo era bem conhecido – o tom de voz de Efendra se torna mais sombrio, atraindo a atenção de todos que estavam no templo – Como me foi ensinado, agora eu lhes revelo:
Aqueles que não descansam infestavam esta terra e a sua maldição se alastrava para todos aqueles que aqui tombassem. Como uma praga, os desmortos assolavam a vida e o agouro de um fim trágico se insinuava.
Então, o mais fiel servo do deus morto veio, o seu nome já se perdeu, mas sua alcunha aqui permaneceu. O Execrável ele era, e com o poder do senhor da mortalha esta terra foi libertada.
Como recompensa nada por ele foi reclamado, mas mesmo assim um aviso foi deixado. A maldição estaria para sempre lacrada, enquanto a prece da lembrança fosse realizada.
Os tempos passaram e o perigo foi esquecido. Aquilo que deveria ser fúnebre se tornou festivo, dando vida ao Festival dos Mortos.
Conjuntamente ao final da história, o transe criado pela oratória de Efendra Da’Hell foi quebrado por um forte estrondo. Kyokai havia tombado, perdido em meio a uma forte visão perpetuada pelas energias do akasha. O pânico se espalhou entre os que estavam dentro do templo, e estes fugiram em direção da praça. A agitação chamou a atenção tanto de Cloud Amarant como de Galean Tiadore, que esqueceram de suas questões anteriores e entraram no templo da Foice e da Lança.
- O que está acontecendo...? – indaga-se Cloud, em voz alta.
- U qui foizzz zakilo ??? – balbuciou o anão que, impulsionado pelo intrometimento e curiosidade advindos do rum.
Ao ver um homem caído ao chão, o trevillense buscou um agressor, mas percebeu que não havia sinais de luta. Algo estranho havia acontecido com aquele homem, e ele descobriria o que. E, quem sabe, uma ação deste tipo lhe concedesse prestígio entre os influentes Endost.
Heleonora estava examinando o wenhajin, enquanto Morgauld e Efendra olhavam espantados para o que tinha acontecido. Uma coisa era certa, nenhum dos sacerdotes tinha a menor idéia do que havia ocorrido. Após alguns minutos, a clériga do deus sol teve a certeza de que Kyokai estava bem, apesar de ainda estar desacordado. Os Da’Hell tinham pedido ajuda a Amarant e Tiadore, para que os ajudassem a levar o imenso wenhajin para a estalagem do Lobo Cinzento, onde ele poderia se restabelecer de maneira mais confortável.
- Mas é claro que posso por ajuda – respondeu o jovem Amarant com presteza. Entretanto, antes mesmo de sair do recinto, ele sentiu a dificuldade da tarefa e exclamou bufando – Por Hengard! Como este homem pesa! Tiadore, correto? Vamos levá-lo à estalagem.
Cambaleando e, ainda sem entender o que estava ocorrendo, Galean tentou ajudar os demais. Com tudo, visto o seu desequilíbrio, ele acabou por atrapalhar mais do que ajudar. No final do trajeto, todos chegaram a um consenso, o anão estava mais desajeitado do que o desacordado Yamaha.
Desta forma exótica, eles partiram do templo, usando de todas as suas forças para suportar o monstruoso peso do desacordado Kyokai Yamaha. Heleonora partiu em outra direção, buscando relatar o acontecido para o anão Brord Coração de Ferro, o líder do Conselho dos Justos.