Matheus Borges Ziderich escreveu:Então, me diz você se o que você aprendeu na faculdade de mídia digital/game design se aplica no caso de um jogo que é tbm obra literária e jogo de interpretação.
Eu também sou da área de design (de moda, no caso), mas como, em se tratando de design, o princípio é o mesmo, acredito que consigo te responder.
Um vestido, ou uma cadeira, uma batedeira, ou um jogo -- todos são produtos com que pessoas hão de interagir de modo a usá-los. Mas, exceto em se tratando do sob medida ou artesanal, é impossível projetar a parada para cada usuário. Projeta-se para uma média que se presume ser o público-alvo. O que, no geral, funciona bem -- as pessoas possuem mais similaridades que diferenças (costumamos fazer alarde em cima das diferenças, aí cria-se a ilusão de que toda pessoa é um floco de neve especial).
Quando eu modelo uma roupa, eu sou obrigado a confeccionar um protótipo da dita peça a ser experimentada por um corpo de prova -- uma pessoa que vista o número da peça, 38, por exemplo -- antes de mandar os moldes para a produção. A peça é 38 e parece boa no papel, mas às vezes acontece de, na prova, a cava limitar o movimento do braço, ou um botão estar na altura errada (apertando o usuário quando é fechado) e uma série de detalhes que só se evidenciam quando a peça de fato é usada por um corpo vivo que sente e se move. Eu marco os pontos na peça de prova que necessitam de ajustes, aplico as correções ao molde, novo protótipo, nova prova -- quando correções não forem mais necessárias, a peça vai pra produção.
Vai servir 100% das vezes em 100% das pessoas que usam 38? Claro que não. Os padrões de numeração pela média ferram os extremos (muito altos e magros, muito baixos e gordos), mas funcionam bem para a grande maioria dos consumidores. Erros podem passar pelo processo de teste? Até podem -- mas serão em número e magnitude muito menor do que se não houvesse havido teste algum.
RPGistas também são mais similares do que diferentes entre si. Eu (e, imagino, o Silva), totalmente "hippie-narrativista/story gamer" me sinto tão diferente dos D&Distas combistas quanto água e óleo. Mas, na realidade, temos muita semelhança quando comparados com não-jogadores -- ambos gostamos de um jogo que possui regras complexas (o que não quer dizer "volumosas" ou "complicadas"), gostamos de narrar feitos de um personagem imaginário frente a desafios também imaginários, etc.
Entre as mesas, também há mais similaridade que diferença. Com jogos mais antigos, é comum haver mais discrepância visto que tais manuais, mais descritivos que prescritivos, não eram muito bons no departamento de "como se joga", requerendo alguma familiaridade prévia. Mas não é mais tão assim, e existe um bom grau de padrão. (Tem um tópico aqui na Spell sobre "as piores sessões de jogo de início de carreira", e tais experiências bisonhas são idênticas às que tive, salvo detalhes -- quanto a jogar "bem" eu não sei, mas no jogar "mal" existe uma consistência enorme entre grupos separados por milhares de quilômetros.)
Mais: entre os jogadores de um mesmo título, as regras são usadas da mesmíssima maneira. Um combate de D&D ocorre do mesmo jeito entre um grupo de Porto Alegre e um de Palmas. O playtest testa justamente estas regras. Em jogos tradicionais, a freqüência com que se usa as regras de combate ou de perícia dependem do mestre e do grupo -- mas quando usadas, todos são iguais. Logo, é possível, sim, testar -- o que é óbvio, é só ver o quanto de playtest as empresas gringas sérias fazem; os jogos não rodam bem por acaso.
Em se tratando do d20, que tem trocentas partezinhas e incontáveis pontos de contato entre si, modificar qualquer das partes requer um estudo cuidadoso -- a mudança na parte X pode parecer boa isoladamente, mas quando interage com a parte F ou Z, surgem problemas? O estudo cuidadoso permite desviar-se das armadilhas óbvias -- mas só com o teste pode-se saber se, de fato, se as considerações do estudo condizem com a realidade, bem como averiguar outros erros que podem ter passado despercebidos na etapa de projeto. Não adianta criar, por exemplo, a regra mais "bonita", "elegante" ou "realista" para armaduras quando, na prática, ela cria resultados ruins como um "personagem invulnerável" ou o fato de metade das armas serem inúteis quando equacionadas na mecânica da armadura.
Sempre que se altera algo no sistema, se deve testar -- e quanto mais gente testando, mais olhos se tem para detectar os piolhos no sistema. Se apenas um dos grupos de teste reclama da mecânica X, talvez o problema esteja com o grupo ou algo menor na explicação da regra; agora, se a maior parte apontar que a mecânica X é quebrada, são grandes as chances de ela de fato sê-lo. E às vezes aquele piolho que um grupo só encontrou de fato chama a atenção para um ponto que de fato pode ser melhorado, mas que não é imediatamente perceptível.
Pega o M&M, por exemplo. Baita sistema. Dá uma lida no tamanho dos créditos do playtest. Se você for ver, boa parte da mecânica do M&M (sistema de dano, por exemplo) é retirada do SRD do Unearthed Arcana, da WotC. Saiu de um título já testado, mas foi testado novamente -- pois havia diferenças na aplicação. O sistema do Blue Rose é praticamente coisas da SRD variante (testadas) + M&M (também testado) -- e foi a teste novamente. (O sistema de magia do BR é uma permutação do sistema de psiquismo do Psychic's Handbook -- testado --, que, por sua vez, se baseia nos poderes de Força do Star Wars d20 -- também testado.)
Procura threads sobre qualquer um desses títulos em fóruns gringos. Vai ser muito difícil tu achar coros afirmando que as mecânicas são quebradas ou mal projetadas -- esses títulos costumam ser recomendados como exemplos de boas mecânicas no d20. E isso não ocorre porque os designers são "gênios" -- os produtos chegam a nossas mãos com um mínimo de erros porque foram testados antes. E mesmo que o cara seja um designer infalível -- por que não tirar a prova?
No caso do M&M é muito mais provável que o mérito esteja no design do Kenson e no playtesting de quase 12 meses que ele passou.







