Sombra

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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:51

Parte 16: Mentiras

Um homem muito branco, magro, com olhos vermelhos e profundos e presas grandes e afiadas vem na minha direção. Com um comando meu, vários tentáculos negros feitos de trevas sólidas começam a surgir se enrolando nele. Ele desaparece embaixo dos muitos tentáculos. São tantos que começam a tomar minha visão até que, de repente, tudo fica na mais completa escuridão. Estou flutuando... Não ouço, não vejo, não sinto... Vazio... Escuridão... Desespero... Angústia... Esbarro em alguma coisa grande, quente e confortável... Sinto-a distanciar... Tento alcançá-la... Grito... Meu grito ecoa e se repete infinitamente num som irritante e repetitivo... Acordo com o barulho do despertador. Ainda estou morrendo de sono. Me levanto para me arrumar. Preciso ir pro colégio. Olho os ferimentos. Tiro de raspão no braço, perfurações por mordida no ombro, arranhões no peito e braços, alguns roxos... A maioria já está cicatrizando. Algumas dores, mas isso é normal. Faço uns curativos, pra não infeccionar, eu acho. Uma preocupação me vem à mente: Me transformarei num vampiro? Fui mordido, não fui? Não é assim que eles se transformam? Ou será que é preciso morrer pela mordida para se transformar? O que pode ocorrer comigo, então? Posso ficar doente? Droga! É tão horrível essa sensação de impotência por não saber nada! Tudo o que fiz nesse final de semana foi em vão. Não descobri porcaria nenhuma. Realmente, tenho que replanejar minha forma de agir. Visto uma blusa por baixo do uniforme para esconder os curativos. Vou pro colégio, junto com minha irmã.

“Ué, cadê o gesso?”

“O médico disse que já podia tirar”.

“Já? Pensei que ia demorar mais”.

“É, eu também”.

“Quando foi que você tirou?”

“Ontem”.

“Que hora?”

“Depois do almoço”.

“Que hora depois do almoço?”

“Antes de vocês voltarem da casa do tio Márcio”.

“E que hora era?”

“De tarde”.

“Ah...”

Deixo um sorriso de satisfação escapar. Duvido que ela saiba porquê respondi assim, mas o que importa é que eu sei. Ao chegar no colégio, começam a perguntar sobre o gesso. Digo que já estava bom e o médico deixou tirar. Depois preciso dar um jeito pra essa mentira se tornar o mais verídica possível ou posso me enrolar. E tenho que fazer isso rápido.

“Mas não ia ficar uns dois meses?” Daniele pergunta relembrando uma de nossas conversas.

“O médico se enganou, Dani. Tive uma recuperação rápida”.

“Isso que eu chamo de engano. De dois meses para duas semanas. No seu lugar, eu mudava de médico”.

Durmo a maior parte das primeiras aulas. Esse é o preço que se paga por ficar fazendo merda durante a noite. Alguns professores me acordam, pedindo que eu vá lavar o rosto. Alguns colegas chutam minha carteira para me acordar.

“A farra foi boa nesse final de semana, hein Athos? Mas levanta aí que agora é a minha aula”. Diz Elias, um professor de física que não admite dorminhocos em seu horário. Pelo menos é uma matéria interessante. Luto um pouco mais contra o sono para entender um pouco mais das leis da natureza.

Término das aulas. “E então? O que aconteceu?” Daniele me pergunta após me alcançar.

“Como assim?”

“Ora, Athos, não se faça de bobo. Você tira o gesso antes de completar um quarto do tempo que deveria, dorme a aula toda como se tivesse passado a noite em claro, vem vestido de forma totalmente diferente do habitual. Isso não é normal. Parece que está escondendo algo. E eu percebi suas expressões de dor”.

“Que expressões de dor?”

“Essas”. Ela diz apertando meu ombro onde o vampiro havia me mordido.

“Ai! Eu me machuquei, ora bolas! E fui dormir tarde porque fiquei na Internet. No que, diabos, você está pensando?”.

“Eu não sei, Athos. Só achei estranho. Desculpa por me preocupar com você”. Ela diz tomando outro rumo.

Volto pra casa. Almoço. Dou um tempo e volto pro colégio. Já estou bem mais desperto. Espero terminar as aulas para falar com Daniele. “Dani, desculpa por hoje de manhã”.

“Ah, tudo bem. Normal”.

“Como assim, normal? Você mesma disse que era estranho”.

“Pois é, normal você agir de forma estranha”.

“Ah...”

Volto pra casa. Ligo para o médico que engessou meu braço. Um amigo da família.

“Alô, doutor?”

“Sou eu mesmo, Athos. O que foi? Algum problema com o braço?”

“Não, doutor. Só estou com uma dúvida”.

“Pode perguntar”.

“É que, pelo que o senhor disse, só vou poder tirar o gesso nas minhas férias. E talvez eu esteja viajando. Será que eu mesmo não poderia tirar o gesso?”

“Olha, Athos. Se você cuidar direito, a cicatrização ocorrerá bem, então você pode, sim, tirar o gesso quando der o tempo. Depois é só trazer para eu dar uma olhada”.

“Valeu, doutor. Então eu mesmo tiro o gesso e, assim que possível, marco uma hora pro senhor ver se ficou bom, ok?”

“Ok, Athos”.

“Então valeu, doutor. Obrigado, hein?”

“De nada, Athos. Tchau”.

Beleza, agora basta marcar um horário no médico durante as férias. Acho que está tudo bem agora. Mesmo se perguntarem pro doutor, ele vai confirmar que permitiu que eu mesmo tirasse o gesso. Agora é só me arrumar pra ir pro shopping e me encontrar com a Graça.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:51

Parte 17: Problemas

Não combinamos o local para nos encontrarmos. O jeito é procurar. Não vou ligar no celular dela. Consigo encontrá-la sozinho. Só ligo em último caso. O shopping nem é muito grande. Localizo-a facilmente. Basta um pouco de tempo. 19:50. Paro por um minuto para admirar uma espada medieval na livraria do terceiro piso, próximo à escada rolante, quando meus olhos são tampados por um par de mãos macias acompanhadas da voz esperada.

“Adivinha quem é”.

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Lá estava ele, como havia imaginado. Ta que eu pensei que ele estaria dentro da livraria, mas olhando a vitrine dela ainda faz minha previsão correta. As roupas eu também acertei. Camiseta preta, calça jeans azul. Ele adora essa combinação. Nas costas da camiseta, desenhos em branco formando asas de anjo. Os cabelos pretos, compridos e revoltosos, estavam soltos.

Imaginando sua vestimenta, programei a minha para entrar em contraste. Camiseta rosa, jardineira branca. Dizem que os opostos se atraem. Vamos ver. Enquanto ele admira algo na vitrine, chego por trás e coloco as mãos sobre os olhos dele. “Adivinha quem é”.

“Dá uma dica”.

Como se ele não soubesse que sou eu. Entrando na brincadeira, começo a cantar uma música que ele mesmo já cantara para mim. “Fonte de mel, nuns olhos de gueixa...”

“Caetano Veloso? Você por aqui?”

Porque não estou surpresa em ouvir isso? Solto-o deixando que se vire.

“Graça? Ah, eu já estava pensando que o Caetano tinha vindo me visitar”. Ele diz fingindo-se decepcionado.

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Lá estava ela. Olhos amendoados cor de mel. Lembrou até da música que cantei pra ela uma vez. Cabelos pretos, lisos e compridos. O sorriso metálico no rosto. O sorriso. Poucas coisas exauriam sua alegria contagiante. Bela. Uma beleza simples, única, nada de espalhafatoso. Não era uma gata que fazia dezenas sonharem, era simplesmente ela. Graça. O nome foi bem escolhido. “Graça? Ah, eu já estava pensando que o Caetano tinha vindo me visitar”. Digo fingindo decepção.

“Estava querendo que o Caetano aparecesse de repente atrás de você? Isso é meio estranho”. Ela diz me abraçando.

“Pensando bem, é melhor que seja você, mesmo”. Digo retribuindo o abraço.

“E aí? Como você está?” Ela diz começando a caminhar em direção à escada rolante de decida, passando pela praça de alimentação.

“Estou bem. E você?”

“Também. Meio nervosa por causa do vestibular, mas estou bem. Você disse algo sobre estar numa fase estranha. É o vestibular? Também está nervoso?”

“Não exatamente. Não é o vestibular que me deixa nervoso. É o fato de eu ainda não ter decidido o que eu quero”.

“Entendo. Mas não liga não, uma hora você descobre o que quer. Basta se manter preparado até lá”.

“Pode crê... E você? O que você quer mesmo?”

“Nem sei direito. Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Turismo... Algo assim”.

“Já é alguma coisa”.

“É... Vamos nos sentar?”

“Claro, só vou comprar um milkshake ali. Me acompanha ou prefere outra coisa?”

“Pode ser”.

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Como já disse certa vez, as únicas coisas que prestam nesse shopping são o cinema, a livraria e esse milkshake. Vir aqui e não ter pelo menos dois desses fatores é o mesmo que não vir. Claro, tem também essas patricinhas que ficam desfilando por aí, mas isso não conta, porque quase nunca venho aqui tendo-as como meta principal. Lembro-me da primeira vez que acompanhei o Diego numa ‘caçada’ aqui no shopping... Volto à mesa levando os dois milkshakes.

“Seu pedido, senhorita. Bon apetit”.

“Obrigada”.

“E então, sobre o quê quer conversar?”

“Sobre nós”.

Já esperava. Ganho algum tempo enquanto forço o milkshake a entrar pelo canudo. Sei que ela gostaria de um relacionamento sério, estável. Não me sentia preparado, porém não queria magoá-la. Acho que fiz pior ao me afastar.

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Tentando fugir do assunto. Será que ele não gosta de mim? Será que fiz tudo errado? Não pode ser. Não pelo modo como terminou nosso último encontro. Gosto tanto dele. Inteligente, engraçado, bonito...

“Esse negócio é bom, mas no início é difícil puxar”.

“Não quer conversar sobre isso, né?”

“Claro que quero, só fiz um comentário”.

“Sabe, Athos, eu gosto de você. Gosto mesmo. Mas parece que você não sente a mesma coisa”.

“Eu gosto de você, Graça. Muito. E sei o que você quer. Você quer um relacionamento sério. Algo mais estável. Mas não sei se fez bem em procurar isso em mim. Não acho que eu esteja pronto. Principalmente agora, com tudo que está acontecendo. Não quero te magoar e nem te prejudicar”.

“Não se sente pronto? E quando estará pronto se não tentar? É um caso, Athos. Se der certo, ótimo. Se não, acaba e continuamos a ser amigos”.

“Não é bem assim. Eu não conheço muitas pessoas que continuaram amigas depois de terminarem um namoro”.

“E você quer ser como os outros ou quer fazer a diferença?”

Touché! Xeque-Mate. Game Over, Athos.

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O sol mal havia se posto e já comecei a ouvir barulhos no quarto de meu Senhor. Parece que acordou agitado. Talvez esteja zangado. Ele fica assustador quando zangado. A porta se abre com força e ele vem à mim. Branco, pálido, magro, olhos profundos e vermelhos, orelhas pontudas, presas grandes e afiadas, formações ósseas estranhas sobre a testa e no rosto um semblante de fúria que me gela o sangue ao encará-lo. Vejo a morte chegando perto de mim e imploro mentalmente para que minha vida seja poupada. Sei que ele não vai me matar. Sou um bom servo. Mas mesmo assim, a impressão que tenho ao vê-lo é esta.

“Árthur! Ligue para Victor! Rápido!” Sua voz soa como um trovão. Forte, poderosa, imponente. Tremo ao ouvi-la e me surpreendo mais uma vez, ao perceber que até hoje não me acostumei com sua presença.

“Victor?”

“Cicatriz. O Rastreador. Mexa-se!”

“Sim, senhor”.

Corro ao telefone e procuro o número do assassino no caderno, enquanto Ele vai ao ‘Refeitório’ saciar sua sede de sangue com suas servas. Encontro o número e ligo implorando que alguém atendesse rápido.

“Alô?”

“Victor, por favor. E rápido”.

“Quem é?”

“O Lorde da Noite”.

Ouço alguns murmúrios de inquietação e pressa do outro lado da linha. Pouco depois meu Senhor vem até mim perguntando sobre o telefonema e tomando o fone de minhas mãos.

“Victor? Saulo está morto. Senti sua morte pouco antes de adormecer. Acho que o deixaram para ver o Sol. Ache o bastardo que fez isso. Traga-o para mim. Vivo ou morto”.

A coisa estava feia. Alguém matou um dos filhos do Chefe e Ele não vai deixar barato. Victor Cicatriz, O Rastreador. Um dos melhores assassinos da cidade. Seja lá quem for o carrasco de Saulo, está com grandes problemas.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:59

Parte 18: Rastreado

Um último beijo de despedida antes dela entrar no carro e ir embora com a mãe. Colocado contra a parede, encurralado pelo próprio orgulho. Parabéns, Athos. Você arrumou uma namorada. O pior é que eu gosto dela. Vaca.

Mais uma coisa para me dedicar, de agora em diante. Pelo menos isto é algo bom, um compromisso nada fácil, mas gostoso. Neste, as recompensas são imediatas. Graça... É, você conseguiu e eu lhe agradeço por isso.

Vou pro ponto de ônibus. Um minuto depois o ônibus chega. Todo mundo reclama que os ônibus demoram, que o transporte público é uma merda. Não tenho do que reclamar. Nunca tive que esperar mais que cinco minutos por um ônibus. Acho que tenho sorte.

“Athos?” Diz uma voz feminina familiar que me desperta de meus pensamentos. Ao ver quem me chamara, praguejo contra o destino. Roxane. Não liguei pra ela.

“Passeando, Athos?”

“É... E você?”

“Mais ou menos. Poxa, você não me ligou. Queria te agradecer pela ajuda lá com meu pai”.

“Ah, não foi nada. E desculpa não ter ligado. Estive meio ocupado ultimamente”.

“Tudo bem. Indo pra casa, agora?”

“É”.

“Eu também. E aí? O que anda fazendo?”

“Um pouco de tudo, mas o que mais tira meu tempo é o colégio”.

“Você faz o terceiro, né? Tem vestibular esse ano”.

“É”.

“Já sabe para o que vai prestar?”

“Ainda não. To meio perdido”.

“Não sabe nem a área?”

“Acho que exatas. Não curto muito a área de humanas. Biológicas é legal, mas não acho que tem muito a ver comigo”.

“Já é alguma coisa”.

“É”.

“Estava no shopping?”

“É. Fui reencontrar uma amiga minha que fazia tempo que não a via”.

“Legal. Faz tempo que não venho aí”.

“Acredite, continua do mesmo jeito”.

“Ah, mesmo assim. É bom andar um pouco, ver gente desconhecida, olhar as vitrines”.

“Se for por falta de companhia que você não vem, pode me chamar que eu te acompanho”.

“Obrigada, mas eu não tenho seu telefone”.

“Então anota aí”.

Passo meu telefone pra ela. Marcar um improvável encontro com uma garota quase desconhecida é traição? Acho que não. Duvido que ela chegue a me ligar. Se ela quiser ir no shopping, vai chamar alguém conhecido, não eu. Conversamos mais um pouco até que descemos no mesmo ponto. Minha casa fica numa direção, a dela em outra, mas mesmo assim, acompanho-a. Não tenho nada pra fazer em casa além de dormir, por que a pressa?

Caminhando por uma ruazinha já deserta a essa hora, minha cabeça começa a doer e latejar. De repente, elas surgem. Desconexas e embaralhadas, imagens sem sentido dançam em minha mente tomando minha visão. Um homem vestindo um sobretudo preto. Garras rasgando meu pescoço. Sangue se espalhando na rua. Eu e Roxane mortos na sarjeta.

Volto a mim e me vejo segurando nos ombros de uma Roxane assustada e desentendida que me pergunta o que aconteceu e se estou bem. Agora estou bem, pois ainda não aconteceu, mas se eu não agir, nós dois estaremos mortos! Merda! Só faço merda mesmo. Chamei atenção demais e agora, alguma coisa está me procurando e quando me encontrar, vai me matar. Não só a mim, mas qualquer um que estiver comigo.

Bato a mão no bolso e agradeço a Deus por eu ser tão largado a ponto de ainda estar usando a mesma calça que usei no domingo. Tiro o giz do bolso e começo a desenhar um círculo no asfalto.

“Athos! Responde droga! O que aconteceu?! O que está fazendo?!”

Merda! Porque não fui direto pra casa? Agora, não só eu, mas Roxane também está em perigo. Droga! “Roxane, vai pra casa, rápido. Eu explico depois”.

“Não, Athos. Explica agora. O que aconteceu e pra quê esse desenho?”

“Vai embora, droga!”

“O que, diabos, está acontecendo?”

Ouço o som do sobretudo esvoaçando quando ele chega no meio da rua vindo de lugar nenhum. Alto, cabelos pretos curtos, vestindo um sobretudo de couro preto sobre camiseta e calça jeans. Ele me fita diretamente com olhos escuros e penetrantes enquanto murmura alguma coisa para si mesmo, mas consigo presumir o que foi dito ao ler em seus lábios a palavra ‘Achei’.

“Uma caçada, Roxane. E eu sou a presa”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:01

Parte 19: Sangue e Trevas

“Devo dizer que, de todas as possibilidades do que eu encontraria, você não se encaixa em nenhuma das que eu imaginei”. O homem de sobretudo disse enquanto caminhava calmamente em minha direção. Com a aproximação, percebo seu rosto coberto por cicatrizes. Tento terminar o círculo rapidamente, mas são tantos detalhes, tantos símbolos...

“Você foi o único que se feriu contra Saulo, mas tenho certeza que me levará aos seus companheiros, não é?” Saulo? Seria o vampiro de ontem? Ele está achando que entrei lá em grupo. Está me subestimando. Preciso ganhar tempo para terminar o círculo. “Você foi mandado para me matar?”

“Só se você oferecer risco. Caso contrário, te levarei vivo”.

“Como me encontrou?”

“Pelo cheiro do seu sangue. Posso encontrar qualquer um pelo cheiro do sangue. E devo dizer que o seu tem um cheiro bem forte, apesar de parecer sumir no ar de vez em quando. Por isso demorei para te achar”. Então é isso. Ele me encontrou devido ao sangue que perdi na luta de ontem. Por isso o comentário sobre eu ser o único que se feriu. Ele acredita que o resto do possível grupo não se machucou, por isso ele não pode rastreá-los e agora quer que eu os delate. Só mais um pouco...

“Vocês caçadores estão cada dia mais jovens e burros. Acredita mesmo que vai conseguir terminar esse feitiço?” Olho assustado para ele e vejo-o jogando o sobretudo no chão e cruzando seus braços rentes ao tronco com as costas das mãos abertas viradas para mim. Grandes cortes surgem, do nada, em suas mãos e o sangue começa a escorrer rápido para cima desafiando a lei da gravidade. Veias negras se evidenciam sob sua pele cada vez mais pálida. Seu rosto se modifica, se tornando mais grotesco e assustador. Seus olhos se tornando totalmente vermelhos, como sangue. Novos cortes se abrem, desta vez em sua testa e pescoço. Não é à toa que tenha tantas cicatrizes. O sangue cobre totalmente suas mãos, se coagulando e formando longas garras de sangue nas pontas dos dedos.

Volto ao círculo, terminando os últimos símbolos. Ele parte rapidamente na minha direção. Quando me preparo para me desviar, ouço a voz de Roxane murmurando algo acompanhada de um clarão e som de fogo se propagando sobre o assassino. Vejo-o recuar apagando o fogo sobre seu corpo e me volto na direção de Roxane vendo-a com as mãos estendidas.

“Termine seu círculo de proteção, Athos. Não vou segurá-lo por muito tempo”. Desenho o último símbolo me perguntando o que teria acontecido e como ela o seguraria.

“Não vai me segurar por tempo nenhum, pirralha!” Ele diz se recompondo e partindo na direção de Roxane, passando do meu lado e estendendo o braço para me acertar as garras, porém consigo me esquivar saltando sobre sua mão e completando o feitiço. “REX UMBRAE!”

Ele se assusta com meu grito e vira o rosto para ver o que havia ocorrido. Não constatando nada, se volta para Roxane, mas se vê coberto de chamas novamente, parando sua investida para se livrar do fogo. Mais uma vez eu sentia a escuridão como parte de mim, tendo as trevas como extensões do meu corpo. Moldo algumas sombras em forma de símbolos místicos para conjurar meus reforços. “Brachi Abyssus”.

Longos braços de trevas sólidas se formam agarrando o assassino pelas pernas e arremessando-o para longe, aumentando a distância e diminuindo provisoriamente o perigo de sua proximidade. Ele pousa suavemente na rua, como se não tivesse peso e vem em minha direção numa rápida investida. “Roxane, corre!”

Dois braços vão em sua direção para interceptá-lo. Ele se esquiva de um, mas o outro consegue segurá-lo por alguns instantes antes de ser desintegrado por um golpe das garras sanguíneas. Ele me ataca com a outra mão na altura de meu pescoço, mas salto para trás me safando por pouco de ser degolado. Os tentáculos atacam-no, mas os golpes parecem não fazer muito efeito sendo um por um desintegrados com os contra-ataques das garras.

“Você é habilidoso, garoto, mas sua estúpida magia não vai te salvar”. Ele diz rosnando e expondo suas presas grandes e afiadas. Como imaginei, um vampiro. Não tem a mesma aparência que o outro, mas parece ser um deles, o que faria muito sentido.

“Brachi Abyssus”. Eu refaço os tentáculos destruídos enquanto ele vem em minha direção. Os tentáculos atrapalham seus movimentos enquanto eu me esquivo das garras e ataco-o com socos e chutes, porém, meus golpes atravessam seu corpo, como se ele fosse imaterial, enquanto seus próprios golpes são perfeitamente sólidos. Estou em gravíssima desvantagem.

Percebo então que consigo prever seus golpes antes deles serem desferidos. Eu já suspeitava disto, mas agora minha suspeita se mostra real. Eu consigo prever o perigo para evitá-lo. Golpes comuns eu estava evitando instintivamente, já perigos maiores, como tiros, eram como um alarme soando em minha cabeça. Aparentemente, quanto maior o perigo, mais eficiente é a minha previsão, pois estas garras parecem ser tão perigosas que eu cheguei a perceber tal façanha. Infelizmente, não consigo escapar completamente de todos os golpes. Pequenos arranhões e cortes superficiais se espalham por meu corpo. Como havia imaginado, não são ferimentos comuns. Eles ardem e queimam, como se estivessem me corroendo. A dor já começa a atrapalhar meus movimentos, se continuar assim, cedo ou tarde perecerei.

“Saulo era um jovem aristocrata, moleque. Eu sou um assassino experiente. Você é bom, mas não tem chance contra mim”. Com a redução no número de tentáculos, tomo distância novamente para invocar mais ajuda. Preciso de uma idéia, um plano!

De repente, pouco antes dele destruir o último tentáculo, labaredas se irrompem em suas costas e vejo Roxane alguns metros atrás dele. Eu falo pra ela correr, ela dá a volta no quarteirão ou sei lá como ela foi parar ali. O que diabos ela ainda faz aqui? Porque não fugiu? Vejo-a arremessar para mim um cabo de vassoura.

“Perfure o coração!” Ela grita, como se eu já não soubesse. Depois ela vai ter muito o que me explicar. Eu pego o cabo e quebro-o em dois, formando duas estacas. Agora sim, isso é um plano.

Até o momento, os tentáculos não estavam me ajudando muito, visto que apenas atrapalhavam os movimentos de meu adversário. Para empalá-lo, precisaria me aproximar e correr o risco de ser ferido pelas garras de sangue. O plano não estava completo, era arriscado, mas era o que eu tinha.

O vampiro já se levantara novamente. A parte superior de seu corpo apresentava várias queimaduras, provocadas por Roxane. De seus olhos vermelhos, transbordava ira. Puxo os trapos rasgados que um dia foram minha camiseta, para que não me atrapalhem. Reúno sombras sobre alguns pontos de meu corpo, formo os símbolos e convoco as trevas. “Brachi Abyssus”.

Vários tentáculos emergem saindo de mim. Um sai de minha coxa, outro de meu braço e três saem das minhas costas. Estava pronto. Porém, o vampiro não vem em minha direção. Parte na direção de Roxane, que fora a única que conseguira feri-lo até agora. Com a ajuda dos tentáculos, me ponho entre ele e seu alvo, tentando perfurar-lhe o coração com o pedaço de madeira, porém seu corpo se desmancha em uma névoa que passa por mim e se reforma nas minhas costas. Roxane quase é degolada pelas garras sanguíneas, mas, felizmente, dois tentáculos pegam-na e arremessam-na para cima na direção contrária a do monstro, tirando-a da área de ameaça dele pouco antes do ataque. Um dos tentáculos se desintegra ao receber um contra-golpe.

Roxane dá um grito com o susto de ser arremessada, mas logo é salva da queda por um outro tentáculo, enquanto eu tento, em vão, empalar o vampiro mais uma vez. Seu corpo se torna fumaça ao receber o golpe. Após se desviar, materializa-se novamente e me ataca, destruindo mais um tentáculo e cortando a ponta de uma das estacas. Meu plano não está funcionando como deveria. Os tentáculos estão atrapalhando os movimentos dele e recebendo os golpes por mim, mas ele continua imune aos meus ataques. Ainda tenho uma estaca, não posso falhar!

Ele me ataca, destruindo os tentáculos um por um, para me pegar sozinho. Desvio como posso e tento atacar usando os tentáculos para bloquear os golpes dele, mas sempre que a estaca chega perto do maldito coração, ele se transforma em névoa e escapa.

“Athos, sai da frente!” Ouço Roxane gritar pouco antes de me abaixar para escapar mais uma vez das garras. Salto para o lado tomado por uma enorme sensação de perigo e vejo uma grande bola de fogo passando rapidamente por mim como um cometa. O vampiro aproveitara minha distração e cravara as garras profundamente em minha coxa, porém as garras mal trespassaram minha perna e já foram puxadas de volta pelo impacto da esfera flamejante com o corpo do monstro.

Caio no chão sem conseguir me apoiar na perna gravemente ferida. Os ferimentos ardiam e queimavam como se um ácido invisível me corroesse. O último tentáculo que restara em minhas costas e que me ajudara em meu último salto, me tirava de perto do vampiro que já se levantara novamente. Mais queimaduras se espalhavam por seu tórax, mas o braço que me atacara foi o que mais sofrera, estando aparentemente inutilizado.

“Admito que subestimei vocês. Acabaram dando sorte. Chega de brincadeira, agora. Acabou. Está cansada mocinha? Magia cansa, é? Que bom. E você, moleque? Como vai fugir de mim agora se nem consegue andar?” Noto então, Roxane apoiando-se exausta. Está suada e o cansaço está totalmente visível em seu rosto. Os olhos estão bem úmidos, aparentemente está se contendo para não chorar. O tentáculo tenta me afastar ainda mais do vampiro, mas este o destrói com um golpe da garra ainda boa. Eu caio no chão, indefeso. Ou quase. Ainda tenho a estaca.

“Mesmo que conseguíssemos te derrotar, outros viriam, não é?” Pergunto tentando ganhar tempo. Preciso pensar em algo, rápido. A dor do ferimento é grande demais, não consigo raciocinar direito.

“Com certeza, mas EU sou O Rastreador. Ninguém seria tão eficiente quanto eu. Levariam muito tempo. Mas isto não importa. Vocês não me derrotaram e nem derrotarão. Minha missão termina aqui”. Ele diz erguendo a garra na minha direção. Fecho os olhos e solto um grito enquanto tento empalá-lo uma última vez. Um grito de desespero e frustração de alguém que está prestes a morrer, mas não quer desistir. Uma última bravata carregando toda a raiva e esperança que me restaram. Pensei que eu diria algo como: ‘Morre, seu puto!’ Me surpreendi ao ouvir meu próprio grito não ter sentido nem para mim. “GLADIUS TENEBRAE!”

Senti a estaca passar pelo corpo do vampiro sem encontrar nenhuma resistência. Falhei pela última vez. Falhei e receberei a morte como castigo. Não só a minha morte, mas também a morte de alguém que não tinha nada a ver com tudo aquilo. Esperei o golpe final de meu algoz. Ouvi um corpo caindo no chão, quando deveria ter ouvido o som das garras rasgando meu pescoço. Quando abri os olhos, vi um corpo na sarjeta e não era o meu.

O vampiro estava caído, esquartejado por um corte que passara na altura do coração e separou a cabeça e os braços do tronco. Pouco sangue escorrera e o corpo se decompunha rapidamente diante dos meus olhos. Enquanto me afastava, arrastando-me, para escapar do fedor, percebi o que eu segurava. No lugar da estaca de madeira, havia uma longa lâmina negra composta por trevas solidificadas. Totalmente negra, a lâmina não apresentava reflexo algum, absorvendo totalmente a pouca luz que incidia sobre ela. Uma espada de trevas. Um sabre de escuridão. Morra de inveja, Darth Vader.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:01

Parte 20: Cura

A espada de trevas se desfaz e novamente me vejo segurando apenas uma estaca de madeira. Solto-a para pressionar o ferimento em minha perna e amenizar um pouco a dor. Roxane vem a mim, ainda fraca e cansada.

“Agüenta firme, vai dar tudo certo”.

“Ah! Preciso de um médico e rápido”.

“Médicos fazem perguntas demais. Tenho uma idéia melhor”. Ela diz pegando o celular e fazendo uma ligação.

“Pai? Preciso de você. Por favor, venha pra casa, é uma emergência. Problema de natureza paranormal. Tchau”. Após desligar, ela pega o sobretudo do vampiro e tenta colocar em mim.

“Veste isso. Não pode chamar atenção. Venha, eu te ajudo a andar, precisamos chegar na minha casa. Lá você vai ficar melhor”. Sem raciocinar direito, devido a forte dor, visto o sobretudo e me apóio nela para iniciar uma claudicante caminhada até o prédio onde ela morava.

O porteiro estranhou e perguntou se estava tudo bem, mas Roxane logo desconversou e seguimos pelo elevador até adentrarmos no apartamento. Me sentei no sofá aliviado por ter chegado, não agüentando mais a dor ao me movimentar. Roxane adentrou para os quartos me pedindo que esperasse. Porém, não pude obedece-la. A perda de sangue me deixara fraco. Eu sentia frio. Antes de ela voltar, a escuridão me tomou.

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Estava exausta. Além de esgotar toda minha energia espiritual, ainda tive que quase carregar Athos até minha casa. Pelo menos estamos vivos. Demos muita sorte. Enfrentar uma criatura da noite de peito aberto, sem nenhuma preparação sempre me pareceu suicídio. Acho que Deus estava do nosso lado. Se bem que Athos estava usando magia negra e de forma magistral. Será que ele serve a algum tipo de demônio? É muita coincidência conhecer um feiticeiro satanista na rua. Athos terá muito o que explicar e papai vai ficar uma fera quando descobrir o que eu trouxe pra casa.

Pego um short do meu irmão e umas bandagens para estancar o sangramento. Ao voltar pra sala, vejo Athos desacordado no sofá. O coração ainda bate, ele não tem muito tempo. Corro até a cozinha e pego uma bacia e um pote de água. Tiro a calça toda rasgada e molhada de sangue dele para limpar os ferimentos com água e enrolar as bandagens. A situação seria constrangedora se não fosse trágica. As perfurações na perna são horríveis. Seria um milagre se nenhuma veia ou nervo importante não houvesse se rompido. Talvez precisaria amputar. Claro, isso num tratamento normal. Basta continuar vivo até meu pai chegar e as chances de se recuperar seriam altíssimas. Visto o short nele e aproveito pra limpar os ferimentos menos graves. O corpo está coberto por cortes e arranhões não muito profundos.

Meu pai chega, junto com meu irmão e se assustam ao ver Athos todo ferido no sofá. Meu pai não está nem um pouco contente. Acho que já causei problemas demais por hoje, ou melhor, por esse mês.

“Você está bem? O que aconteceu?”

“Encontrei Athos no ônibus quando voltava pra casa. Ele resolveu me acompanhar, mas fomos surpreendidos por um vampiro no meio do caminho”.

“Pedro, pegue os equipamentos. Como sabia que era um vampiro?” Meu pai apressa meu irmão para que possam realizar os ritos e novamente se vira para mim para saber do ocorrido.

“Ele usava sangue como arma e tinha presas grandes e afiadas”.

“Parece que andou aprendendo alguma coisa com os livros roubados do capítulo”.

“Poderia aprender mais se o senhor me deixasse freqüentá-lo”.

“Já discutimos isso antes, Roxane”. Ele diz cortando minha mudança de assunto, enquanto Pedro chegava trazendo um medalhão, uma vela e fósforos. Ele pega Athos e deita-o no chão, enquanto meu pai acende a vela e a prende num cinzeiro.

“Como se livraram do vampiro?”

“Hã?”

“Um vampiro os atacou e vocês ainda estão vivos. Como?”

“Athos lutou com ele”.

“O rapaz não é humano?”

“Eu não sei. Ele usou feitiçaria. Acho que é um mago como o senhor”.

“Minha magia expulsa e apazigua seres malignos, Roxane. Você disse que ele lutou contra o vampiro. Como?”

“Como?” Me faço de desentendida tentando pensar em alguma coisa pra dizer.

“O que você está escondendo, Roxane? Diga como ele lutou com o vampiro!”

“Escuridão. Ele atacava com a própria escuridão da noite”.

“Feitiçaria que manipula escuridão? Isso parece magia negra. O rapaz faz o tipo ‘rebelde sem causa adorador de demônios’, mas parece muito jovem para conhecer magia. Deve ser membro de alguma seita infernalista. Porque você tinha que se meter com esse tipo de gente, Roxane?”

“Deixa ele ao menos se defender, pai”.

“Você arriscou nossa posição. Nos delatou. Não posso deixar o rapaz morrer aqui em casa, mas se o curar seremos delatados”.

“Salva pelo menos a perna dele. Tá destruída, coitado. Ele se feriu me protegendo”.

“Talvez ele sabe que você é minha filha e quer te usar para descobrir onde é o capítulo da Ordem aqui em Goiânia. Está atrás de conhecimento”.

“Pai, salva a perna dele. Depois que ele acordar você o interroga”.

“Como foi ferida?”

“Garras de sangue”.

“Fonte mística. Feriu a alma dele. Eu posso curar a carne, mas o espírito só pode ser curado pelo tempo e a determinação dele. Tire as bandagens, preciso ver o ferimento”.

Eu faço o que meu pai manda. Ele analisa os ferimentos, coloca a vela já acesa no chão entre ele e Athos, senta cruzando as pernas e apanha o medalhão com a imagem do caduceu em alto relevo. Ele fecha os olhos e começa a se concentrar. Assisto-o em silêncio enquanto ele relembra os conhecimentos de anatomia para realizar a magia de cura. Um minuto depois, ele faz o sinal da cruz com o medalhão enquanto recita o caminho em latim. Ao finalizar, leva o medalhão sobre a coxa ferida completando o feitiço.

“Amém”.

De repente vejo a regeneração do ferimento acontecendo acelerada milhões de vezes. Em alguns segundos, só restava o sangue seco em sua perna, sendo que o ferimento havia desaparecido por completo sem deixar nem ao menos uma cicatriz. Maravilhada, não consigo segurar minha surpresa. “Incrível...”

“O corpo ficará bem, porém o espírito precisará de tempo para se recuperar. Preciso fazer algumas perguntas à ele, para não arriscar a existência do capítulo”.

Meu pai mal terminara de falar e um som eletrônico no ritmo de um rock cujo nome não sabia começou a tocar. Procurei a fonte e percebi que vinha do celular no bolso da calça de Athos. O identificador de chamada dizia ‘Casa’. “Deve ser a mãe dele preocupada”.

“Atende. Vou acordá-lo”. Meu pai diz enquanto junta os dedos médio e indicador desenhando um símbolo imaginário na testa de Athos. Antes de atender ouço-o dizendo ‘Acorda’. “Alô?”

“Quem é?” Parece ser a mãe dele mesmo.

“É a mãe do Athos?” Pergunto enquanto vejo-o se sentando ainda tonto, fraco e confuso no chão.

“Sou, posso falar com ele?”

“Só um minuto”. Passo o telefone para ele dizendo ser sua mãe.

“Mãe? Eu... Eu estou bem mãe, estou na casa de uma amiga minha. Já estou indo, mãe”.

“Diga a ela que está tarde e você vai dormir aqui”. Meu pai o ordena, me deixando confusa.

“Eu tenho aula amanhã”. Athos responde tampando o fone.

“Você não pode chegar em casa assim. Sua mãe ficará preocupada e fará muitas perguntas”.

“Mãe, o pai dela está aqui e disse que é melhor eu ficar aqui hoje. Já está tarde, é perigoso andar na rua a essa hora... Ta bom. Ela quer falar com o senhor”. Athos volta ao telefone e depois entrega o aparelho pro meu pai. Pedro se dirigia ao quarto, provavelmente para arrumar as coisas pro nosso hóspede.

“Alô? Como a senhora se chama? Núbia? Núbia, meu nome é Gaspar. O Athos veio até minha casa ajudando minha filha, mas acabou ficando tarde. Acho melhor ele dormir aqui hoje, amanhã ele volta pra casa de manhã, tudo bem? Não, não tem problema nenhum, pode ficar tranqüila. Absolutamente, não é necessário. Pode deixar. Tchau”. Meu pai devolve o aparelho para Athos.

“Mãe? Ok, pode deixar... Beijo, tchau”. Athos finaliza a ligação e fita a perna curada.

“Cadê os buracos que estavam aqui?” Ele pergunta confuso.

“Não estão mais. Sua perna está, fisicamente, curada”. Meu pai responde.

“Fisicamente?”

“Sua alma foi ferida no combate. Apesar de poder curar feridas no corpo, o espírito tem de se curar por si só”.

“Calma aí, espera aí, tempo. Alguém pode me explicar o que está acontecendo?”

“Segundo o que minha filha disse, vocês foram atacados por um vampiro. Você lutou contra ele utilizando magia negra e, sabe-se Deus como, venceu, porém feriu-se gravemente. Roxane me ligou pedindo minha ajuda. Eu vim e lhe curei usando magia branca”.

“Ok. Super normal, né?”

“Definitivamente não. Desde quando um garoto de 15 anos tem poder suficiente para usar magia negra com tamanha eficiência a ponto de vencer uma criatura da noite sem nenhum preparo antecipado?”

“17 anos, ok? Então você me curou com magia? Valeu, mas ainda sinto dores na perna”.

“Como disse, o espírito foi ferido. Levará algum tempo até que ele se recomponha. Porém estou mesmo intrigado com sua magia. Então você manipula a escuridão?”

“É... Não foi tão eficiente quanto uma bola de fogo, mas até que deu pro gasto”.

“Você conhece, também, magias de ataque elemental?”

“Eu não, mas...” Me desespero e tento impedi-lo de dizer balançando a cabeça negativamente atrás de meu pai.

“... mas sei que esse tipo de magia é muito bom contra as criaturas da noite”. Graças a Deus ele captou minha mensagem. Não sei o que meu pai faria se descobrisse que eu consegui aprender um pouco de magia proibida com os livros que eu roubava do capítulo.

“Ou você é um prodígio que estuda magia desde muito novo, ou arrumou formas alternativas de conseguir poder rapidamente e acredito que seu caso seja a segunda opção”.

“Como eu aprendi magia é algo que reservo apenas a mim mesmo, desculpe-me”.

“Foi um pacto, não foi? Você pertence a alguma seita de adoração ou está sendo instruído por algum feiticeiro independente?”

“Nenhuma das alternativas estão corretas. Não tenho nenhum pacto e não sirvo a ninguém além de mim mesmo”.

“Me permitiria fazer um teste?”

“Como?”

“Farei um ritual. Tudo que você precisa é cooperar. Ao término, saberemos se você serve a mais alguém, mesmo que inconscientemente”.

“Então comece”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:02

Parte 21: Conversas

Tentáculos de escuridão solidificada, garras de sangue coagulado, bolas de fogo, magia de cura... Desde a visita de Khestalus comecei a presenciar coisas mais estranhas a cada dia e hoje está sendo o pior deles. E olha que desta vez nem teve tiroteio. Agora, para provar que não sou um adorador de demônios, vou ter de participar de um tipo de ritual feito por um velho metido a Gandalf. Não me importaria em provar nada, mas estou em débito com ele e estou me perguntando se eu não estaria servindo Khestalus, mesmo que indiretamente.

O que mais me intriga é Roxane. Aparentemente, essa família está bem acostumada com as esquisitices do mundo, tendo bons conhecimentos, sabendo até fazer magia, mas parece que dividem a magia em branca e negra. Se Roxane esconde sua magia de seu pai, então seria a magia dela negra? Porque e como ela aprenderia isso? Ficamos eu e ela na cozinha. Depois que começou a chover, o tempo esfriou mais e ela resolveu preparar um chá. O pai e o irmão ficaram na sala fazendo uns preparativos para o tal ritual.

“E então?” Começo uma conversa, em voz baixa para que não fosse ouvida na sala.

“Então o que?”

“Não vai me explicar nada? Todo esse papo de magia, aquelas bolas de fogo, como se tudo fosse normal”.

“Pensei que você saberia”.

“Não, eu não sei. Pra mim, tudo isso é novo, mas parece que pra vocês é tudo normal”.

“Não é exatamente normal, mas todos aqui sabemos de muitas das coisas que se escondem dos olhares da população”.

“Como?”

“Meu pai é membro de uma ordem de estudiosos do sobrenatural”.

“E por isso, ele ensina magia pra toda a família”.

“Não. Só pro Pedro. Mulheres não são aceitas na ordem”.

“Ordem do Bolinha, é?” Ela sorri cansada e bebe um pouco do chá antes de continuar.

“É uma ordem antiga, com costumes e conhecimentos antigos”.

“E como você aprendeu o que sabe?”

“Invadindo o capítulo da ordem e roubando alguns livros”.

“Então você me impediu de falar sobre as bolas de fogo porque seu pai não sabe que você faz magia”.

“E por causa do tipo de magia que eu estudei”.

“Como assim?”

“A Ordem estimula o aprendizado de magias de proteção e contenção, por parte dos membros, porém meio que proíbe o aprendizado de vertentes mais violentas da magia, por considerá-las corruptas. Grande parte da magia que estudei é violenta”.

“Magia negra?”

“Não é exatamente magia negra. Eles simplesmente acreditam que poderes como estes corrompem levando a buscas por mais poder, o que resulta no envolvimento com seres das trevas”.

“E porque escolheu aquilo com as bolas de fogo?”

“É chamada de Magia de Ataque Elemental. Envolve o entendimento das forças da natureza para controlar os elementos que a compõe. Escolhi aquilo por pensar diferente do meu pai. Acho a magia dele meio inútil. Acredito que a melhor defesa é o ataque. Do que adianta você ficar protegido dentro de um círculo, impedindo que a criatura sobrenatural se aproxime, se qualquer um pode te matar com um revólver totalmente comum e mundano? Foi difícil. Tive que procurar nos livros mais obscuros da biblioteca da ordem. A propósito, e você? Como aprendeu sua magia? Você não parece ser um conhecedor da magia e do sobrenatural, como pode fazer tudo aquilo?”

“Eu também queria saber como”.

“Hã?”

“É como se eu tivesse vários conhecimentos na minha cabeça, mas não consigo acessá-los conscientemente. Eu faço aquilo mais por instinto do que por conhecimento”.

“Como assim? Você é humano, não é?”

“Sou, mas não sei exatamente como minha magia funciona. Você faz suas magias de forma consciente porque seus conhecimentos estão acessíveis. Você os conseguiu com estudo, adquirindo-os conscientemente. Eu não consigo acessar os meus conhecimentos, porque não os consegui desta forma. Eles meio que foram enfiados na minha cabeça”.

“Tipo Matrix?”

“Acho que sim”.

“Como?”

“Não sei”.

“Tem certeza que não foi um pacto?”

“Não, eu não tenho certeza”.

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Ele olhava pela janela de sua base de operações, na cobertura de um alto prédio. Observava a cidade iluminada por suas várias luzes, durante a noite chuvosa. Sua cidade. Orgulhava-se de si mesmo. O Lorde da Noite. O Senhor dos Anunnaki da região. Todo o poder dos seres da noite reunidos nele. Não fora fácil chegar ali. Pactos foram feitos, acordos foram selados, traições ocorreram e sangue foi derramado, mas aquilo tudo resultou em sua ascensão. Agora, ninguém mais ousava sair da linha, ninguém desafiava seu poder. Os tolos que o faziam, logo eram destruídos para servirem de exemplo aos próximos. Na noite anterior, uma forte afronta foi feita e nesta noite o culpado já receberia seu castigo. Assim era seu governo. Rápido e preciso. A chegada de Cicatriz já havia sido anunciada e ele o esperava para dar as boas vindas ao assassino e conhecer o algoz de seu filho. A porta se abrira, e os passos de entrada foram ouvidos.

“Eficiente como sempre, hein Victor?”

“Eficiente, mas não eficaz”. Uma voz diferente da que esperava foi ouvida, fazendo com que o poderoso Anunnaki virasse sua confortável cadeira para ver quem entrara, apesar de já saber de quem se tratava.

“Andrei?” Ele disse fingindo surpresa ao se deparar com o irmão de Victor, Andrei Cicatriz, O Matador.

“Atrás de quem Victor foi?” O homem de cabelos curtos e escuros, com várias cicatrizes pelo rosto, vestia sobretudo preto fechado e falava com ódio no olhar.

“Atrás do assassino de Saulo. Aconteceu alguma coisa?” A pergunta foi meio retórica, pois ele já supunha qual seria a resposta e lamentava uma perda tão valiosa quanto Victor.

“Está morto. Senti sua morte há pouco tempo. Liguei para ele e nada. Você é o único que pode me responder alguma coisa. Porque mandou-o sozinho, se o risco era grande?”

“Nesse ramo, os riscos sempre são grandes, Andrei. Você sabe muito bem disso. Eu o mandei sozinho, pois queria que encontrasse o maldito que matou Saulo. Apenas encontrar e, se possível, trazê-lo para mim, vivo ou morto. Partiu dele a decisão de fazer tudo sozinho”. Os Cicatrizes. O Rastreador e O Matador. Os melhores assassinos sobre seu comando. Um era capaz de encontrar qualquer um que estivesse procurando. O outro matava de forma limpa e sem erros. Esta fatal sociedade estava agora desfeita, provavelmente pelo mesmo verme que matara seu filho. Duas afrontas ao seu poder em duas noites.

“Quero o caso para mim”.

“É seu, porém não quero que cometa o mesmo erro. Se precisar de ajuda, não hesite em pedir. Não subestime o alvo”.

“Só preciso de ajuda para encontrar o maldito. Victor era O Rastreador. Nunca me ensinou a técnica dele. Quero rastreadores, mas quem vai matá-lo serei eu”.

“Que assim seja”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:03

Parte 22: Provação

“Athos?” A chuva ainda caía forte lá fora quando Gaspar me chamou. Aparentemente o rito estava pronto. Chegara a hora de saber se eu era tão independente quanto imaginava. Fui em direção à sala e vi desenhado no meio dela, com giz, um grande círculo místico repleto de símbolos. Com certeza um belo trabalho.

“Adentre o círculo”. Eu obedeço, ficando no meio do desenho. Gaspar aponta um medalhão em minha direção e diz o que suponho ser as palavras de ativação do ritual: “Capio Servus”.

De repente sinto uma sensação estranha. Olho para o círculo, mas não vejo nada de diferente, porém sinto que algo aconteceu. Peço instruções do que fazer. “E agora?”

“Saia do círculo”.

Eu observo os símbolos e percebo o que acontecera. Ele me aprisionou ali dentro. Minha certeza é absoluta. Eu não conseguiria sair. Meu corpo não me obedeceria. Não poderia nem ao menos esticar o braço para além dos limites do círculo. Uma terrível sensação de claustrofobia se apossava de mim. Era totalmente estranho estar preso por um desenho no chão. Era algo simplesmente impossível, mas estava acontecendo. Eu estava preso dentro do círculo. Hoje, realmente, estava sendo a noite mais absurda da minha vida. Tento não demonstrar meu receio. “Só isso?”

“Exatamente”.

De repente meus pensamentos se convergiram para o anel. O motivo que me impedia de sair. Era ele que me deixava à mercê do ritual. Minha certeza sobre isto era absoluta, apesar de não saber como ou por quê. Para sair dali, bastaria tirar o anel. Apenas isto.

“E então? Porque a demora?” Gaspar me pergunta. Posso perceber satisfação no olhar dele. Ele já deve estar achando que me venceu. Fito Roxane e percebo que ela me olha apreensiva. Há quanto tempo estou parado neste círculo? Tenho que sair.

“Estou tentando imaginar como funciona esta magia. Qual o objetivo dela?” Faço-o conversar para ganhar tempo. Basta tirar o anel e estarei livre para sair. Apenas isto. Tirar o anel.

“Ela aprisiona aqueles que servem as trevas”.

“Aprisiona dentro do círculo?” Mantenho-o falando. Preciso tirar o anel para me livrar dessa prisão mística. Basta tirar o anel. Abdicar do poder e do conhecimento que ele me confere para me ver livre novamente.

“Isso”.

“E como ela identifica um servo?”

“Aqueles que servem as trevas têm suas almas marcadas. O rito identifica tais marcas e aprisiona os portadores delas”.

“Quer dizer que se eu servir às trevas, não conseguirei sair do círculo?” Tenho que tirar o anel, mas não posso demonstrar isso. Se descobrirem, vão querer tomá-lo de mim. Preciso tirar o anel. Ponho a mão no queixo, enquanto levo a mão com o anel para trás, em uma posição de indagação. Com o anel longe das vistas de todos, começo a tentar tirá-lo usando polegar e mínimo para isto.

“Exatamente. E até agora você não saiu”.

“Estava meio temeroso. Pensei ser algo mais perigoso”. Consigo tirar o anel sem deixar que percebam. Sinto a pele formigar por onde o anel passa e, após retirá-lo de meu dedo, sinto um choque mental, minha visão se escurece por dois segundos e fico meio tonto. Todas as possibilidades que conseguia ver com o anel, de repente desaparecem. Sinto-me fraco, como se parte de mim me fosse tomada. Como se minha mente se esvaziasse num instante. Por um momento perco noção de tempo e espaço. Sombras solidificadas? Escuridão controlável? Trevas tridimensionais? Impossível! Eu precisava do anel, mas antes precisava sair do círculo.

“Você está bem, Athos?” Roxane me pergunta notando minha repentina tontura enquanto saio do círculo.

“Estou sim, foi só uma tontura repentina. Acho que foi pela perda de sangue”. Mal saio do círculo e recoloco o anel recebendo a enxurrada de informações novamente. Desta vez não me seguro de pé e caio ajoelhado enquanto recebia o poder e o conhecimento sobre a magia de controle de trevas. Quando percebo, já abandonei a consciência.

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“Pai?”

“O rito não foi desfeito. Ele não precisou lutar para sair. Apesar de parecer estranho, a única explicação é que deve ser, realmente, a perda de sangue e o cansaço. A boa notícia é que, aparentemente, ele não é um servo das trevas. A má notícia é que não tenho nenhuma outra idéia de como explicar o aprendizado dele”.

“Ele desmaiou”.

“Sim. Pedro, me ajude a carregá-lo pro seu quarto. Você arrumou o colchão?”

“Arrumei. Rox, arruma alguma coisa pra mim comer, aí”.

“Ok”. Vou pra cozinha arrumar o jantar dos dois. Normalmente eles chegariam mais tarde e esquentariam a comida que eu deveria fazer, mas devido aos acontecimentos de hoje, é melhor eu ficar bem boazinha. O que teria acontecido? Athos disse que não sabia como tinha conseguido seus conhecimentos. Nem tinha certeza se havia sido um pacto. Meu pai disse que ele passou no teste, mas porque ele desmaiou? É estranho pensar nisso. Ele pareceu sincero enquanto falava comigo, mas está escondendo do meu pai. Eu também escondo minha magia de meu pai, apesar de ter dito à ele. Talvez nós dois precisássemos de alguém para desabafar sobre esse tipo de coisa. Será bom ter alguém pra conversar, mas ainda preciso descobrir mais sobre ele.

“Roxane, quero que tente descobrir mais coisas sobre o rapaz. Ele não vai me falar nada e é melhor eu não forçá-lo, mas acredito que você consiga persuadi-lo a falar. Só não vá dizer o que não deve”. Enquanto jantávamos, meu pai começava a pensar em como descobrir mais coisas sobre Athos. Medida defensiva para esconder a existência e localização do capítulo da ordem.

“Pode deixar pai. Não vou sair por aí contando a localização do capítulo”.

“E quero que você pare de ficar indo lá. Quantas vezes já te disse isso? É perigoso, tanto para você quanto para todos os membros”.

“Porque você não me deixa participar? Assim eu não precisaria invadir”.

“Já conversamos sobre isso, Roxane. É perigoso. Estou tentando te proteger”.

“Como protegeu a mamãe?! Ou como me protegeu hoje contra o vampiro?!” Me exalto um pouco, lembrando-o da morte de minha mãe e acabo magoando-o. Ele se cala e fica cabisbaixo, terminando de comer. Tento consertar. “Desculpa, pai. Eu não queria dizer isso. Sei que não é sua culpa. Você não pode controlar tudo”.

“Estou cansado, vou me deitar. Arrumem a sala, sim? Boa noite”. Ele se levanta sem terminar de comer. Droga. Falei bobagem.

“Parabéns, Roxane”. Pedro diz, demonstrando raiva pelo que fiz.

“Não enche, Pedro. Ao menos você está lá dentro, aprendendo e estudando. Você está ciente de tudo e sabe se defender. Tradições machistas idiotas!”

“Você pensa assim por curiosidade. Não sabe o que realmente se esconde. Se soubesse, tudo que desejaria era ter uma vida normal como a que você tanto rejeita”.

“Eu não sei o que se esconde? Me diz Pedro, com quantos vampiros você já lutou? Quantos você já presenciou morrerem e se decomporem em segundos na sua frente?”

“Eu já vi coisa pior! Já vi criaturas que não morrem! Seres que, a única coisa que se pode fazer contra eles é mandá-los de volta para casa e aprisioná-los lá até que encontrem um jeito de retornarem!” Ao ouvir isto, fico meio atordoada com a possibilidade que vem à minha mente e hesito um pouco antes de continuar.

“Você já viu um demônio?!”

“Esquece, Rox. Me ajuda a arrumar a sala”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:03

Parte 23: Preparação

Escuridão... Completa escuridão... Fria e obscura... Vazia e desesperadora... Silêncio absoluto... Nada... De repente, deixo de flutuar e toco o que acredito ser o chão... A escuridão é tamanha que nem consigo me lembrar de como é a luz... Apesar de toda a escuridão, consigo perceber algo à frente... Uma pessoa... Uma silhueta... Tentáculos negros surgem e se enrolam em mim... Sinto o frio me queimar e grito, porém nenhum som é ouvido... Os tentáculos me elevam de cabeça pra baixo e me colocam próximo ao dono da silhueta... Apesar da escuridão, percebo que ele possui chifres... Uma voz tenebrosa, distorcida e assustadora ecoa dizendo: “Logo”.

De repente, várias vozes se juntam ao eco enquanto os tentáculos me afastam rapidamente dali... Uma cacofonia de vozes desconexas inunda meus ouvidos e mais uma vez eu grito... Desta vez meu grito é ouvido, mas apenas por um instante antes de se juntar às outras milhares de vozes... Então eu caio... Estou em uma rua deserta... Um homem vem se aproximando... Ele possui garras de sangue e corre para me atacar... Quando tento recuar, percebo que estou preso em um círculo desenhado no chão... Ainda consigo me esquivar do golpe e contra-atacá-lo... Ele se desfaz em pó quando o acerto, porém outros começam a surgir e me cercar... Para cada um que eu acerto, dois surgem para tomar seu lugar, até que se aglomeram sobre mim e, cansado, paro de resistir...

Quando acordei, já era dia. Demorei algum tempo para me situar. Casa da Roxane. No dia seguinte à noite mais estranha que já tive. Desmaiei após recolocar o anel. Agora me lembrei. Eu tirei o anel para sair do círculo. O rito de Gaspar me aprisionou. Isso quer dizer que, quando estou usando o anel, sou um servo das trevas. Porém, sem o anel, sou um cara normal, até mesmo com dificuldades em acreditar em tudo o que passei. Cortes em estado de cicatrização se espalham pelo meu corpo. Foi tudo verdade. Minha mente não está me pregando uma peça.

Me levanto ainda sonolento. Pedro, o irmão de Roxane, ainda dormia em sua cama. Caminho pelo apartamento. A sala já está arrumada. Nenhum sinal que pudesse denunciá-la como palco de um ritual mágico na noite anterior. Ouço algo vindo da cozinha e me dirijo para lá. Roxane estava de costas para mim, ainda de pijama, preparando um copo de leite achocolatado.

“Bom dia”. Disse inesperadamente, fazendo-a se virar.

“Bom dia”. Ela responde após me ver. “Dormiu bem?”

“Com alguns sonhos estranhos, mas acho que é normal, e você?”

“Também. Depois da noite de ontem, pesadelos podem se tornar bem freqüentes mesmo”.

“Pode crer. Tudo bem se eu for embora agora? Quero aproveitar para chegar agora que não tem ninguém em casa”.

“Tudo bem. Deixa seu telefone. Precisamos conversar mais sobre isso tudo”.

“Ok”.

“Sua calça tá no canto do sofá, junto com seus tênis e o sobretudo do vampiro”.

“Vou levar o sobretudo, tudo bem? É que minha calça tá meio rasgada”.

“Rasgada e meio, né? Pode levar, não quero isso aqui em casa não”.

Checo o celular, carteira e chaves nos bolsos e me troco. “É, essa calça vai direto pro lixo, quando chegar em casa”.

“Isso se ninguém te mandar pro hospício antes, né? Vestindo sobretudo preto e calça rasgada debaixo de sol quente”.

“Ao menos ainda estou vivo para pagar mico. Vivo e inteiro. Valeu mesmo, pela ajuda”.

“Eu não fiz nada sozinha. Estamos quites. Não quer comer nada, antes de ir?”

“Não, obrigado. Eu como qualquer coisa quando chegar lá. Tchau, Roxane”.

“Tchau”.

Nos despedimos depois que me vesti e anotei meu número num papel ao lado do telefone. Caminhei até minha casa sentindo os olhares curiosos e ouvindo piadinhas devido ao sobretudo que vestia. Passei pela rua onde tudo ocorreu. Não havia nenhuma marca que indicasse a batalha há poucas horas. Nem o círculo que eu havia desenhado não resistira à chuva. O corpo provavelmente foi incinerado pelos raios solares. Era como se aquilo não tivesse acontecido. Como se o tempo houvesse conspirado a meu favor para apagar pistas. Segui para casa. Ao chegar, guardei o sobretudo, joguei a calça rasgada no lixo, me arrumei... Na noite passada, fui pego desprevenido. Fui caçado. Escapei por muita sorte. Não quero mais depender de sorte. Não quero mais ser caça. Quero ser um caçador. Quero estar sempre pronto. Preciso fazer algumas preparações. O mundo mudou para mim. Preciso mudar para ele.

Quando Luna chegou da escola, eu já me arrumava para sair. Fez algumas perguntas, brincou comigo, porém meus pensamentos estavam em outro lugar. Em como me preparar para as noites vindouras. Tentava me concentrar nos componentes para a conjuração de determinados encantamentos. Fui pra escola à tarde.

“Porque não veio de manhã?” Pergunta Daniele, enquanto assistíamos a aula.

“Aconteceram uns imprevistos. Fui dormir tarde e não consegui acordar a tempo”.

“Então não está sabendo da festinha que o pessoal organizou, né?”

“Não”.

“Vai ser na casa do Rogério. Dez reais por pessoa. Vai ser legal, vamos?”

“Claro. Quando?”

“Sem ser nesse sábado, no próximo”.

“É só com o pessoal da nossa sala?”

“Aham. É melhor só o pessoal da sala, mas algumas meninas vão levar os namorados”.

“Saquei... Teve alguma matéria nova?”

“Acho que não... Não. Que eu me lembre, não”.

“Beleza”.

“O que está acontecendo, Athos? Ultimamente você está estranho”.

“Ué, pensei que eu fosse estranho naturalmente”.

“Não, você está mais estranho do que o normal”.

“Talvez esteja aprimorando minha estranheza”.

Depois que a aula terminou, me dirigi para uma papelaria, onde comprei algumas coisas para minhas preparações. Quando voltei pra casa, já estava escurecendo.

“Ué, cadê seu gesso?” Minha mãe perguntou ao me ver pela segunda vez após minha primeira empreitada noturna e só então perceber que eu já tinha tirado o gesso.

“Eu falei com o doutor e ele disse que eu podia tirar”.

“Já?”

“Já. Se quiser, liga pra ele”.

“Pensei que ia demorar mais. Já está bom?”

“Já”.

“Que bom. E essas coisas?” Ela pergunta apontando minha sacola.

“Uns materiais pra um trabalho da escola”.

Comecei a me concentrar em meus preparativos quando ouvi o telefone tocando. Sentado no chão junto aos materiais, minha mente procurava os componentes para a invocação dos feitiços mais usados, quando Luna abriu a porta do meu quarto com o telefone na mão dizendo ser a Graça. Eu devia ter ligado pra ela. Já comecei mal, não posso ficar pisando na bola assim. Pego o telefone e me sento na cama. “Alô”.

“Oi, sumido”.

“Ah, oi, Graça. Nossa, estava cheio de problemas hoje. Eu ia te ligar mais cedo, mas não deu tempo. Desculpa”.

“Tudo bem, eu te perdôo dessa vez. Quais problemas são esses que te impediram de me ligar? Posso ajudar?”

“Ah, agora já perderam a importância”.

“Ok... E quando você vai vir aqui me ver?”

“Não sei... Que tal sábado? Aí a gente passa a tarde juntos”.

“Nossa, só sábado? Não tá com saudades não, é?”

“Claro que estou, mas tenho aulas à tarde”.

“Eu sei, seu bobo. Eu também tenho. Você vem almoçar aqui?”

“Não, não, vou depois do almoço”.

“Legal. Aí você me ajuda com física? Estou com dificuldade em algumas coisas”.

“Faço o que você quiser”.

“Cuidado com o que propõe, eu posso me aproveitar disso”.

“Acho que não vou achar muito ruim ter você se aproveitando de mim”.

“Veremos. Sábado depois do almoço?”

“Sábado depois do almoço”.

“Então tá. Vê se me liga, hein?”

“Pode deixar”.

“Beijo, tchau”.

“Beijo”.

Deitei na cama, após desligar o telefone. Tanta coisa havia acontecido de estranho ontem que acabou ofuscando um pouco o acontecimento principal. Sim, eu lutei com um vampiro, quase perdi minha perna, fui curado e depois preso por feitiços estranhos, mas o principal é que agora eu estava comprometido. Graça...

Tomei um banho, jantei e esperei entardecer um pouco mais até que minha mãe e Luna decidiram ir dormir. Então entrei dentro de meu quarto para começar minhas preparações. Abri uma folha de cartolina e comecei a desenhar o círculo e os símbolos místicos nela quando senti um odor desagradável e percebi, atrás de mim, uma presença me observando. Continuei de costas para ele, desenhando.

“Boa noite, Athos”.

“Boa noite, Khestalus”.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:04

Parte 24: Companhia

“Da primeira vez que nos encontramos você estava bem assustado e agora já não demonstra medo algum. Parabéns, vejo que você evoluiu bastante”. Ele vestia terno preto, da mesma forma que estava na última vez em que nos encontramos. Os longos cabelos negros, presos em um rabo de cavalo, e os olhos, extremamente verdes, conferiam-lhe um aspecto exótico... Era como se aqueles olhos emanassem poder e exigissem respeito.

“Nos últimos dias eu passei por mais coisas do que em toda a minha vida. Aprendi algumas lições”. Respondo ao me virar para fitá-lo. Observo-o sem medo desta vez.

“Às duras penas, mas aprendeu. Estou sabendo que se envolveu diretamente com a sociedade Annunaki e, aparentemente, você se saiu melhor do que a grande maioria”.

“Tive bastante sorte”.

“Não tenho dúvidas. Porém, não foi apenas sorte. Devo dizer que grande parte foi competência. Você está utilizando a magia de forma excepcional. As lendas dizem que Nephalins têm grande aptidão para a magia, mas nunca pensei que fosse de forma tão esplendida”.

“Como assim? O anel não era pra isso?”

“O anel confere conhecimento, Athos. Conhecimento e preparação para a utilização de magia. Porém, magia é uma ciência complexa. Ela segue fórmulas primordiais para liberar o poder de sua alma e alterar a realidade presente. Ela segue regras. Porém, quando conjura um feitiço, você parece, instintivamente, procurar falhas nestas regras para poder distorcê-las para seu benefício próprio. Você não é o único a fazer isso, claro. Feiticeiros poderosos e experientes também o fazem, mas você já faz isso com apenas alguns dias de contato com a magia. Eu nunca tinha visto nada igual”.

“Você nunca tinha visto um Nephalim, certo?”

“Certo. Está mesmo sendo muito interessante descobrir esse tipo de coisa”.

“Então, observar seu suposto filho está sendo um passa-tempo agradável?”

“Você não é um passa-tempo, Athos. E eu não estive te observando. Porém, eu tinha que me manter informado sobre você”.

“E onde você estava quando lutei com o vampiro assassino? Porque não surgiu para me ajudar? Sabia que eu quase perdi minha perna? Sabia que eu quase morri?!”

“Eu não posso te acompanhar o tempo todo, Athos. Na verdade, eu fiquei sabendo apenas de certas coisas e apenas depois de terem ocorrido. E é por isso que eu estou aqui. Você fez coisas muito erradas. Se envolveu em perigos muito grandes. Acredite, os Annunaki estão atrás de você neste momento. Não tenha dúvidas disto”.

“A culpa é sua. Você veio, falou um monte de merda e foi embora sem explicar nada. Tive que ir atrás de respostas”.

“Eu sei. Era exatamente isto que eu queria. Que você buscasse as respostas. E é para que erros como este não voltem a acontecer que estou aqui novamente”.

“Vai me contar o que eu quero saber?”

“Não. O aprendizado é maior quando envolve uma busca. Porém, eu não posso te deixar numa busca cega, senão você acabará morrendo muito rápido. Estou aqui para lhe oferecer um guia”.

“Um guia?”

“Sim, alguém que conhece o bastante para te aconselhar sobre o caminho a percorrer, porém não o bastante para revelar o caminho certo. Alguém para me manter melhor informado e para te ajudar. Athos, eu lhe apresento Lóki, seu novo servo, guia e mascote”. Dito isto ele apontou a janela e, quando me virei, me deparei com um monstrinho nela. Era horrendo, media cerca de dez centímetros, magro e cabeçudo, com pele escamosa, orelhas grandes e pontudas, olhos vermelhos, garras, asas e pequenas presas que sorriam malignamente para mim. Não tive como não me lembrar do filme dos Gremlins.

“Oláááááááá, menino-demônio”. Ele disse com sua vozinha sinistra enquanto sorria com suas pequenas presas pontiagudas. Era a coisa mais feia que eu já tinha visto na vida.

“O que diabos é isso?!”

“Lóki é um diabrete. Ele vai te ajudar em sua busca por aperfeiçoamento”.

“Eu não posso criar um filhote de chupa cabra aqui em casa!”

“Ele terá esta aparência apenas durante a noite. Como diabretes morrem quando expostos a luz solar, concedi a Lóki a capacidade de se disfarçar durante o dia”.

“Eles também morrem com o sol? Como os vampiros? Tem mais disso espalhados por aí?”

“Diabretes vivem no Inferno, mas podem ser trazidos para cá por meio de magia. Eles morrem quando expostos a luz solar, porém devido a motivos bem diferentes que os vampiros. Lóki é esperto e tem conhecimentos que lhe serão bem úteis. Alimente-o com carne crua e não terá problemas”.

“Menino-demônio burro. Lóki fica mesmo, mestre?” Ele disse voando com suas pequenas asas próximo a Khestalus. Ele parecia não querer ficar, o que era bom para mim, pois eu também não queria que ele ficasse. Não era só feio, era nojento também. Uma mistura de morcego, lagarto e qualquer coisa bem horrível batida no liquidificador. A idéia que me veio a mente era acertá-lo com um taco de baseball enquanto voava.

“Sim, Lóki. Você acompanhará Athos a partir de hoje”.

“Então é isso? Você vem e me deixa um anel mágico. Agora volta e me deixa a personificação da palavra desgraça. Quando retornar da próxima vez vai trazer o que? Seu tridente ou o Cérbero?”

“Eu não tenho um tridente e, quanto ao Cérberus, quem sabe daqui a uns cem anos, talvez você ganhe um, se for esperto”.

“O Cérbero existe? Ou melhor: Existem? Como uma raça?”

“Você se surpreenderia se visse a quantidade de lendas e histórias com um fundo de realidade. Espero que descubra algumas delas”.

“No que essa coisa pode me ajudar?”

“Com conselhos. Você está agindo como se fosse um guerreiro. Porque acha que eu lhe conferi magia de controle de trevas? É para você espreitar. Para se manter oculto e não chamar atenção. Se eu quisesse um guerreiro, não escolheria um frágil e inexperiente humano”.

“Eu já sei que agi de forma errada, ok? Não precisa insultar. Tomarei mais cuidado das próximas vezes. Já estou até me preparando para isto. Porém, não tenho como voltar atrás. Você poderia dar um jeito nos vampiros pra mim? Tirá-los do meu encalço?”

“Você se meteu nisto sozinho. O problema é seu. Tenho muitos assuntos a resolver”.

“Belo pai você é, hein? Mas acho que eu não poderia esperar nada melhor vindo de um demônio, certo? Que tipo de assuntos?”

“Só para começar, estou envolvido em algumas guerras. Sim, no plural. Éden e Inferno estão em uma guerra declarada há poucos anos e tudo indica que ela acarretará no temido Armageddon. No Inferno, o Feudo em que vivo está em guerra por territórios contra um Feudo vizinho. Ainda tenho de cuidar da minha seita e de minhas buscas pessoais. Simplificando, mesmo sendo imortal e tendo praticamente todo o tempo do mundo, ele ainda é escasso”.

“Onde está ocorrendo a guerra entre céu e inferno?”

“Onde você acha? Aqui mesmo. Na Terra. No Plano Físico”.

“Então esta guerra que já ocorre há alguns anos levará ao fim do mundo? E como ninguém está sabendo dela ainda?”

“É uma guerra secreta, Athos. Invisível. Se prestar atenção nos detalhes, perceberá que o fim do mundo está chegando. Lembra dos boatos que surgiram na virada do milênio? Lembra o que eu disse sobre lendas e histórias com fundo de verdade?”

“O mundo não acabou na virada do milênio”.

“Não. Ele começou a acabar nesta data”.

“Por quê? O que aconteceu?”

“Ninguém sabe dizer exatamente o que aconteceu, mas alguns fatos não podem ser negados. O Éden invadiu o Inferno. Um dos governantes foi destruído e substituído. Um outro governante destrancou os portões do Inferno e veio para a Terra. Desde então, a guerra foi declarada”.

“Então foi o Éden que começou essa guerra? Ou esta seria apenas a sua versão dos fatos?”

“Isto foi o que ocorreu. Não é uma versão. Note que em momento algum eu disse quem iniciou a guerra. Para descobrir isto, teríamos que retroceder a milênios atrás. Guerras não ocorrem do nada. Elas surgem devido a eventos ocorridos anteriormente”.

“Eu gostaria de conhecer um anjo, para saber a versão deles”.

“Celestiais são inimigos terríveis. Não aconselho procurá-los. Muito menos em tempos de guerra”.

“Eles me atacariam? Porque?”

“Querendo ou não, você está do lado do Inferno, Athos. Se encontrar um deles, fuja. Acredite, é o melhor que você pode fazer”.

“Mas eles não são bons e justos? Não deviam me conhecer antes de me julgar?”

“Sim, porém os conceitos de bondade e maldade variam de pessoa para pessoa. Alguns anjos podem ser bem cruéis”.

“Eu sou, de alguma forma, um servo seu? Por isso eles me atacariam?”

“Você não é um servo meu. Pelo menos, ainda não. Porém, enquanto usar o anel, estará em contato com energias infernais. Este contato lhe confere habilidades únicas, mas pode lhe classificar erroneamente e isto, com certeza, seria um ótimo motivo para lhe caçarem”.

“É, não preciso de mais gente me caçando...”

“Então seja esperto. Use as trevas para se esconder, observe e aprenda, aja apenas quando for propício, não chame atenção para você”.

“Eu saquei, não sou burro”. Digo enquanto guardava os materiais, após terminar de desenhar o círculo na cartolina e deixar para terminar minhas preparações outro dia. Assim que fechei a porta do armário, senti um odor fétido e percebi que Khestalus havia partido e deixado o monstrinho voador comigo.

“Enfim sós, menino-demônio. Kiakiakiakiakia!” Disse Lóki com sua vozinha irritante enquanto voava até meu ombro. Será uma longa noite.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:05

Parte 25: Lóki

Ele devorava o pedaço de carne crua que eu havia apanhado na geladeira e esquentado um pouco. Era pequeno, por isso não podia comer muito. Não daria muitas despesas, mas eu teria que escondê-lo. E precisarei mantê-lo preso. Não sei do que ele é capaz. Talvez possa atacar alguém, quando faminto. Se bem que, pelo tamanho, não é grande coisa.

“Menino-demônio pensativo. Lóki sabe menino-demônio encrenqueiro. Lóki esperto, sabe coisas. Ajuda menino-demônio”.

“Certo, Lóki. Já que é tão esperto, aprenda a falar meu nome. Eu sou Athos. Não sou menino-demônio. Repete comigo: A-THOS. Não é muito difícil”.

“Menino-demônio acha Lóki burro, não é? Menino-demônio muda idéia depois Lóki salvar vida dele. Lóki esperto. Mestre confia Lóki. Mestre manda Lóki tomar conta menino-demônio burro”.

“Khestalus te mandou pra ser um espião, isso sim. Você só vai me atrapalhar. Com sorte, te matam na próxima vez que me encontrarem”.

“Lóki não morre fácil. Lóki esperto. Lóki foge e esconde. Menino-demônio burro. Menino-demônio fica, luta e morre”.

“Que ótimo! Agora estou levando sermão de um morcego demônio falante de dez centímetros de altura que não consegue nem ao menos formular frases corretamente”.

“Lóki conhecer vizinhança. Depois Lóki volta”. Disse pouco antes de voar pela janela. Espero que voe baixo o bastante para ser atropelado. Com sorte ele pousa em um cabo de eletricidade e morre eletrocutado. Ou talvez eu precise comprar uma gaiola...

Me lembro das palavras de Khestalus: ‘O anel confere conhecimento, Athos. Conhecimento e preparação para a utilização de magia. Porém, magia é uma ciência complexa. Ela segue fórmulas primordiais para liberar o poder de sua alma e alterar a realidade presente. Ela segue regras’. Mas por que eu não consigo acessar tais conhecimentos? Por que eu não consigo visualizar essas regras? Estariam tais informações guardadas em níveis subconscientes?

Me deito na cama e fecho os olhos. Começo a me lembrar de tudo o que aconteceu nos últimos dias. Me lembro das manifestações da mágica. Me concentro no primeiro feitiço que fiz. Ponho a mão sobre os olhos. “Nox óculus”. Enxergar na escuridão... Ver através das trevas... Perceber tudo aquilo sob o domínio das sombras... Ter a visão obscurecida para ver o mundo obscuro... Fazer da própria noite, meus olhos... De repente ouço uma vozinha irritante falando algo perto de mim. Eu não compreendo o idioma falado, mas é algo que lembra latim. Porém, apesar de não entender o som que chega aos meus ouvidos, eu consigo entender a mensagem passada por ele: “Acorda, menino-demônio”. Abro os olhos assustado e vejo Lóki ao meu lado.

“Menino-demônio dorminhoco. Lóki voar bastante”. Ele diz sorrindo com suas pequenas e afiadas presas. Agora ele falava português. Será que eu cochilei? Não posso dormir e deixar esse monstrinho solto em casa.

“Menino-demônio olhos estranhos”.

“Olhos estranhos? Como assim?”

“Olhos estranhos...”

Vou até o banheiro para olhar no espelho e percebo o que Lóki quis dizer com ‘estranhos’. Meus olhos estavam completamente negros. Era como se minhas órbitas estivessem vazias. Um vazio profundo, completamente escuro. Como se meus olhos fossem feitos de escuridão. Até me espantei com o que vi. Era bem desagradável. Imaginei que fosse um efeito que, até então, eu desconhecia do feitiço de visão no escuro. Ao desfazê-lo, meus olhos voltaram ao normal.

“Ah, magia. Menino-demônio explica casa pra Lóki. Lóki mora aqui, agora”. Ele diz voando pela porta do banheiro. Eu o sigo e vejo-o na sala, sobre a televisão.

“Aqui é a sala, Lóki. Onde minha família se reúne para assistir TV, que é esse aparelho que você está usando de poleiro”.

“O que ser isso, menino-demônio? Poções?” Ele diz voando até o barzinho e examinando uma garrafa.

“Não, são bebidas. Essa aí é chamada de whisky. É alcoólico. Deixa a pessoa maluca”.

“Hum... Poções... Lóki quer uíkis”.

“Sai daí, você não vai tomar whisky”. Digo pegando-o de cima da garrafa.

“O que tem o whisky?” Uma voz conhecida pergunta vindo de trás de mim. Me viro mantendo Lóki seguro em minhas costas e vejo Luna já de pé.

“Luna? Porque já está acordada?”

“Talvez porque eu estude de manhã também, ameba. Você não está bebendo whisky para ir pra escola, né?”

“Hã? Whisky? Não, nada a ver”. De repente sinto uma mordida em minha mão e acabo soltando Lóki com a dor. Mas o que vejo saindo de trás de mim, me surpreende por um instante. Um gato preto com olhos verdes caminha miando baixo na direção de Luna.

“Que gracinha! Onde você arrumou ele, Athos?” Ela diz pegando-o. Que ótimo. O disfarce que Khestalus deu a ele é o de um gato. Eu odeio gatos. O filho da mãe ainda olha pra mim e sorri, com o mesmo sorriso maligno que demonstra em sua forma verdadeira. Sinistro ver um gato sorrindo daquela maneira. Me fez lembrar do gato de Alice no País das Maravilhas. Mesmo sendo uma história infantil, tem várias coisas bizarras e o gato sorrindo é uma delas.

“Ganhei ontem, mas o mantive escondido”.

“Ele tem nome?”

“Hã... Tem. Whisky. O nome dele é Whisky. Eu estava falando com ele quando você chegou”.

“Whisky? Por que Whisky?”

“Achei que ele tem cara de Whisky”.

“O gato é preto. O que ele tem de parecido com Whisky?”

“A sonoridade da palavra combina com ele. Tem um nome melhor?”

“Hum... Botas. Pra lembrar do gatinho do Shrek”.

“O gato de botas do filme é laranja”.

“Igual whisky”.

“O Whisky é preto”.

“A bebida, não o gato”.

“A bebida é que é laranja”.

“Foi o que eu disse”.

“Ele não vai se chamar Botas”.

“Então arrume um nome decente pra ele”.

“Hum... Que tal chamá-lo de Gato?” Ela me olha com cara de ‘desaprovação sem nem ao menos cogitar tal hipótese’.

“Então, que tal Lóki?”

“Por que Lóki?”

“Se não me engano, é o nome de um personagem mitológico”.

“Lóki... Ok, pode ser Lóki. Vou colocar um pouco de leite pra ele. Depois temos que pedir pra minha mãe pra podermos criá-lo”. Ela diz saindo para a cozinha com o gato nos braços. Procuro um relógio e vejo que provavelmente eu cochilei enquanto pensava no anel. Começo a me arrumar para ir pro colégio. Passei a noite quase toda em claro. Terei alguma dificuldade para me manter acordado. Espero que minha mãe me proíba de criar esse diabo sarnento aqui em casa. Não terei como ficar com ele se minha mãe não aprovar. Assim o plano do Khestalus vai por água abaixo.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:07

Parte 26: Relações

Saímos, eu e Luna, para o colégio. Lóki nos seguia sorrateiro em sua forma felina, porém Luna não percebera. Percebo que ele procura andar sempre na sombra, evitando os raios diretos do sol. Aparentemente, mesmo protegido pela forma felina, ele se incomoda com a luz. Chego na escola e vou direto para minha sala. Sinto dificuldade em manter a concentração na aula, pois meus pensamentos se divagavam e se perdiam em meio ao sono e preocupação. Tenho que fazer algo para me livrar da perseguição dos vampiros antes que me encontrem novamente. Quero acreditar que tenho algum tempo até lá. Quero acreditar, também, que esse maldito diabo transmorfo tenha alguma utilidade para mim. Infelizmente, não consigo me convencer de nenhuma das duas coisas.

“Este é meu colégio, Lóki. Eu venho aqui pra aprender um monte de coisas que não preciso saber”. Digo, me sentando, durante o intervalo, num banco sombreado, onde estava aquele gato preto, com seus olhos atentos, observadores e maliciosos. Não sei se foi correto deixa-lo vir. Mas, se ele ficasse em casa, seria pior, pois estaria sozinho com minha mãe até que ela saísse pro trabalho. Não confio em deixa-lo sozinho com ninguém. Pode parecer um indefeso gatinho, mas eu sei que por baixo de todo aquele pêlo, existe uma cria do inferno. Não sei o que ele pode fazer, mas duvido que seja algo bom.

“Falando com o gato, Athos? Caramba, você é mais estranho do que eu imaginava”. Rogério, um colega meu, diz ao se abaixar para pegar a bola que alguém chutara e viera parar ao meu lado. Não gosto dele. Um filhinho de papai, imbecil, que adora contar vantagem sobre qualquer coisa e acha que a escola é um shopping. O típico idiota que se acha melhor que todo mundo e por isso não respeita ninguém, além de ter o péssimo hábito de não perder uma oportunidade de fazer uma piada ou comentário cretino e dispensável.

“Ele é mais agradável do que muita gente”.

“To ligado. Gosto é igual cu, mesmo. Você gosta de gatos, eu prefiro as gatas. Falando nisso, vai no churrasco?”

“Vou sim. Estava pensando se eu posso levar alguém”.

“Não é o gato, é?”

“Não, é minha namorada”.

“Caralho, nem sabia que você tinha uma namorada. Pagando bem, que mal que tem, né? Pode sim, leva ela pro pessoal conhecer”.

“Valeu”. Idiota...

Ao término das aulas, volto pra casa. Dou mais um pedaço de carne crua para o Lóki, enquanto almoçamos. Ele não parece satisfeito comendo aquilo, mas foi o que Khestalus disse para dar a ele, então que se dane. Volto para o colégio e assisto as aulas da tarde. Depois que estas terminam, vou para o ponto de ônibus e rumo ao local onde posso parar de pensar em problemas sobrenaturais e me preocupar com coisas mais mundanas. Depois de descer do ônibus, pego o celular e caminho mais um pouco até chegar em frente a casa da Graça. Ouço o telefone tocando lá dentro, ao mesmo tempo que toco o interfone. Demora para atender. Ambos chamam, sem sinal de movimentação no interior da casa. Talvez não esteja.

“Alô?”

“Que demora. Está sozinha?”

“Oi, Athos! Estou, sim. Minha mãe deve ter dado uma saidinha. Espera só um pouquinho, porque tem alguém na porta”.

“Ok”. Desligo e espero ela atender o interfone.

“Oi, quem é?”

“Eu mesmo”.

“Athos! Entra”. Ela diz enquanto o portão se abre eletronicamente. Eu entro e cruzo o jardim até a porta, que é aberta por uma Graça com os cabelos molhados e enrolada em uma toalha branca. Estava no banho, daí a demora.

“Quer me deixar maluca? Quase tive um troço correndo pra atender o telefone e o interfone ao mesmo tempo. Minha mãe deve ter saído enquanto eu estava no banho”. Ela se explica antes que eu a beijasse, sentindo o frio dos cabelos molhados umedecendo minha camiseta.

“Surpresa melhor, tive eu. Adorei o modelito. Bem... prático”.

“Muito engraçadinho. Fica à vontade, eu já volto”. Ela diz voltando pro banheiro e me dando tempo mais que suficiente para entrar no quarto dela, surrupiar o que eu vim pegar e voltar pra sala sem que ela percebesse. Alguns minutos depois, ela senta ao meu lado vestindo short e camiseta, com os cabelos ainda úmidos.

“Que bom que veio. Achei que só nos veríamos no sábado”.

“Resolvi fazer uma surpresa. Saí da escola e vim direto pra cá. Vou chegar mais tarde em casa, mas não tem problema”.

“Já contou pra sua mãe?”

“Não. Acho que nem tive a oportunidade, ainda”.

“Minha mãe achou legal. Meu pai e meu irmão que não reagiram muito bem, mas, sabe como é, normal”.

“É, acho que eu também não vou reagir muito bem quando minha irmã começar a namorar. Deve ser algo instintivo, do homem, esse sentido protetor”.

“Ciúme tem nome novo agora, é?”

“Não é ciúme, é um sentimento de proteção que deve estar presente em todos os machos, de qualquer espécie”.

“Aham... Sei. Tudo bem, eu sei que você não vai admitir. Vocês são todos iguais, mesmo, huhum”. Ela diz sorrindo, com seu belo sorriso metálico enfeitando um semblante sereno e feliz, enquanto o agradável cheiro adocicado de seu perfume se espalhava pelo ar. O ambiente emanava uma placidez inigualável eliminando qualquer tensão. Um instante sem nenhum resquício das trevas que se espalhavam pelo mundo. Será que as verdades ocultas valem mais que isso? Será que descobrir sobre o que se esconde na escuridão pode ser melhor que um momento iluminado com alguém que se gosta, como esse? Não seria melhor uma vida plena e feliz, na ignorância, longe dos perigos que cercam a verdade? Haveria retorno para alguém, como eu, que já começara a trilhar este caminho? Não me atrevo a fazer tais perguntas. Não agora. Não quero estragar o momento. Nos beijamos.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:09

Parte 27: Procura

Pouco depois, Tânia, a mãe da Graça, chega do supermercado, carregando algumas sacolas de compras. Não fico muito mais tempo do que isso, para não ter que ver o sogro ou o cunhado. Pelo menos, por enquanto. Volto pra casa.

“E esse gato, Athos?” Minha mãe me indaga pouco depois de minha chegada.

“Ah, ganhei do Bruno. Achei que seria legal termos um bicho de estimação. Podemos ficar com ele?”

“Deixa, mãe. A gente cuida dele”. Luna pede, realmente querendo ficar com o bicho. Pelo menos ela está se comprometendo a ajudar com ele.

“Ele solta pêlos, mas já sabe fazer a sujeira na caixa de areia”. Digo, para minha mãe não deixar o gato em casa, mas disfarçando, afinal de contas, para todos os propósitos, fui eu que o trouxe.

“Nós não temos uma caixa de areia”.

“Ih, então tem que comprar, senão ele vai fazer no tapete”.

“Athos, você não está ajudando muito!”

“Tudo bem. Acho que vocês devem ter um bichinho mesmo. Não dá pra criar um cachorro do porte do Zeus num apartamento, mas não vejo problemas com um gato”. Ela se decide, lembrando de Zeus, meu cachorro que morreu antes da mudança. Como se esse filhote de cruz-credo travestido de projeto de tamborim pudesse substituir um cão como o Zeus. Aquele, sim, era um animal decente, não esse felino inútil.

“Ah, uma menina te ligou, Athos”. Diz Luna, se lembrando.

“Quem?”

“Uma tal de Rosana, ou alguma coisa assim. Falou pra você ligar pra ela depois”.

“Ah, ok”. Roxane, não Rosana.

Depois de resolver que ficaremos com o gato, jantar e tomar banho, vou para o quarto terminar minhas preparações. Não quero mais ser surpreendido indefeso. Da próxima vez que me encontrarem, eu estarei esperando-os. Mas ainda preciso fazer algo para me esquecerem, senão virão vampiros cada vez mais perigosos ao meu encalço e, mais cedo ou mais tarde, vou acabar perecendo. Pelo que eu entendi, vieram atrás de mim por eu ter eliminado aquele traficante. Ou ele era importante, ou tinha relações com gente importante. Acredito que, além da vingança, eles tenham uma necessidade de justiça, para mostrar que não se deve mexer com eles. Preciso entende-los para me antecipar ou não vou durar muito. Querem minha morte.


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“Oi, Athos. Que bom que ligou. Como estão os ferimentos?” Diz Roxane, depois que eu me identifiquei pelo telefone...

“Estão totalmente curados. Acho que o tratamento do seu pai surtiu efeito neles também”.

“Provavelmente. Cortes como aqueles não cicatrizariam tão rápido assim sem uma ajudinha”.

“Você me ligou na quarta. Desculpa a demora pra retornar, sabe como é a correria, né?”

“Sei sim. Queria só saber se estava tudo bem com você. Precisamos conversar melhor. Queria entender direito o que aconteceu naquela noite”.

“Certo. Pode ser domingo à noite?”

“Pode, sim”.

“Algum local de preferência?”

“Pode ser no Goiânia Shopping? Como disse naquele dia, faz um tempão que não vou lá”.

“Claro, sem problemas. Domingo, às oito e meia, na praça de alimentação do Goiânia Shopping, fechado?”

“Fechado”.

“Então a gente se vê lá”.

“Ok. Um beijo. Tchau”.

“Outro. Até mais”.

Dois dias se passaram. Não saí nenhuma vez, desde que Lóki chegou. Meu sono voltou ao normal e, até agora, não tive nenhuma visita que tentasse me matar. O anoitecer da sexta-feira chega. Abro a cartolina, devidamente preparada, no chão do meu quarto, me posiciono dentro do círculo, me concentro na escuridão à minha volta e recito as palavras de ativação, me focando no resultado da magia. “Rex Umbrae”. Um ritual que se tornou rotina, sendo executado a cada anoitecer, desde que percebi o perigo no qual havia me envolvido. No bolso, giz e um pedaço de madeira, cortado do cabo de um rodo, com entalhes sujos com sangue seco, retirado dos meus próprios ferimentos. Nas costas, desenhados com pincel atômico, símbolos arcanos que poderiam até se passar por estranhas tatuagens. Prendo o cabelo, visto o sobretudo e amarro o lenço no rosto. Abro a janela e fito as várias luzes da cidade, porém, a escuridão é muito maior. Coloco a palma sobre os olhos para fazer com que tal imensidão se torne minha visão. “Nox Óculus”. Minha percepção se aguça, sob o manto de trevas trazido pela noite. Transmuto minha sombra num novo círculo místico, para que eu possa identificar melhor os seres que caminham na noite. “Conscientia Tenebrarum”. Sinto, imediatamente, duas presenças próximas a mim. Uma fraca, no quarto ao lado, reconheço como minha mãe e meus pensamentos me indagam novamente sobre esse fato. Lembro que devia ter perguntado sobre ela para Khestalus. A outra, bem mais forte, é Lóki empoleirado na cabeceira da cama, me olhando e sorrindo sadicamente. Olho para o chão, cinco andares abaixo.

“Menino-demônio se esborracha no chão. Lóki vai rir, vai sim”. Ele diz com pessimismo, antevendo minhas ações.

“Você vem comigo, Lóki. É meu guia, lembra?”

“Lóki vai com menino-demônio, mas Lóki ri assim mesmo”.

Sombras se mesclam às minhas roupas e cabelos, me concedendo uma aparência muito mais tenebrosa, quase me fundindo à escuridão ambiente. Um demônio de sombras surge onde antes havia um adolescente idiota vestido como idiota e prestes a fazer inúmeras coisas idiotas. “Brachi Abyssus”. Tentáculos de trevas solidificadas surgem de minhas costas, saindo dos símbolos desenhados em minha pele, como extensões de mim mesmo. Subo no parapeito e olho mais uma vez para o chão. Lóki pousa no meu ombro. Por um instante, como um costume quase instintivo, penso em pedir proteção divina, com o clássico ‘seja o que Deus quiser’, mas reflito sobre isso e chego a conclusão que não tenho esse direito. Com a adrenalina já correndo em meu sangue, salto da janela.

A sensação de estar suspenso no ar me assusta de início. Os tentáculos suportavam meu peso, se segurando no parapeito da janela, enquanto meu corpo permanecia no ar, como se flutuando. Antes que alguém pudesse me ver, os tentáculos se movem agarrando nos parapeitos das janelas superiores, me elevando, pelo lado de fora do prédio, até o topo. Observo a cidade mais uma vez. Imagino quantas coisas ela esconde, quantos segredos ela guarda e quantas criaturas ela abriga. Olho para o chão, agora a quatorze andares de distância.

“Depois que menino-demônio burro morrer, Lóki vai comer muita carne. Vai sim”.

“Se for esperar minha morte, pra comer, Lóki, você vai morrer de fome”. Respondo, me assustando com minha voz, aparentemente distorcida pelas sombras mescladas ao lenço sobre minha boca.

Moldo as sombras dos prédios, postes e carros ao meu redor, criando um enorme círculo arcano centrado em mim. “Creo Tenebrae”. As luzes começam a se enfraquecer e se apagar, aumentando o domínio da escuridão. Me concentro. Preciso encontrar alguém com conhecimentos úteis. Talvez um servo que tenha bons conhecimentos ou em contato com alguém que os tenha. Fico cerca de dez minutos parado, esperando as sombras me apontarem uma direção, ignorando a presença e comentários de Lóki, que voava, ria e me insultava, até que sinto uma presença distante e em movimento. Me atiro de cima do prédio, me esquecendo por um instante de onde eu estava. Os tentáculos me levam em segurança até o chão e trato de correr para interceptar a fraca presença captada.

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Após ajudar a traçar os novos objetivos de ampliação da Irmandade e pegar minhas obrigações para tal, volto para casa. É fácil manipular os vereadores recém-eleitos, mas aqueles mais experientes dão algum trabalho. Não me surpreenderia se descobrisse que alguns deles têm seus próprios Pactos. Eu gosto do que faço, sou bom nisso. O desafio é interessante e as recompensas mais ainda. Basta dizer as coisas certas para as pessoas certas nos momentos certos e esperar que eles façam o que desejamos. Adoro isso. Trânsito praticamente inexistente à essa hora, por isso deixo o pé pesar um pouco mais no acelerador. Aparentemente, acabou a energia em uma parte da cidade. Ruas e casas na completa escuridão. Diminuo um pouco a velocidade, por precaução. Percebo a intensidade dos meus faróis diminuir, juntamente com a, já baixa, visibilidade da rua. Diminuo ainda mais a velocidade quando, de repente, alguma coisa salta sobre meu carro, enquanto minha porta se abre com força. Piso no acelerador ao mesmo tempo em que saco a pistola do coldre para tentar acertar o que quer que seja que estava me atacando, mas alguma coisa gelada me arranca violentamente de dentro do carro e me joga contra o capô, ainda me segurando. A escuridão era quase completa, não fosse a claridade tímida que meus faróis tinham se tornado. De pé, sobre meu carro, estava a criatura que me fizera aquilo. Ele parecia fazer parte da escuridão, porém era visivelmente tangível. As sombras, que eram seu corpo, tremulavam tridimensionalmente com o vento. Ele me ergueu, usando as trevas gélidas que, apesar da ausência de dobras, pareciam ser seus braços, sendo que um deles me enforcava e amordaçava enquanto me aproximava dele. Percebi que ele tinha chifres, mas não tinha boca, porém isto não o impedia de falar. O som de sua voz era baixo e distorcido, soando de forma sinistra.

“Como ousa invadir meu território, verme? Como ousa profanar meu ar com a imundice de seu mestre? Se arraste de volta até ele e avise-o que não tolerarei futuras invasões”.

Enquanto ele falava, a pressão aumentava em meu pescoço, me sufocando, e o frio queimava minha pele, aumentando a dor. Ao terminar, ele me arremessou contra a rua, onde caí rolando e me ralando, porém ainda vivo. Quando olhei novamente, ele havia desaparecido. Olhei a minha volta, não encontrando nada além da pesada escuridão ambiente. Atacado por um demônio de sombras que clamava parte da cidade como sendo seu território. Provavelmente, toda essa parte mais escura. Duvido que sobreviva muito tempo chamando tanta atenção, mas enquanto ele estiver por aqui, é melhor que a Irmandade não se envolva com ele. Entro no carro, dou a partida e saio dali, enquanto pego o celular e ligo para Antônio, o mestre de cerimônias e representante da Irmandade na cidade.

“Pode falar”.

“Antônio, aconteceu uma coisa comigo e acho que a Irmandade devia ser informada”.

“O que foi?”

“Voltando para casa, agora, fui atacado por um tipo de demônio de sombras. Não consegui identifica-lo. Era um monstro estranho, parecia feito de escuridão. Ele parece estar reclamando parte da cidade como território particular. Acho que, de alguma forma, ele identificou em mim as bênçãos dos Pecados. Acho melhor informar a todos para se manterem longe da área dessa criatura”.

“Você consegue definir exatamente qual a região?”

“Acho que sim. Era grande, teremos de delimitar mais uma área proibida, no mapa”.

“Ele te deixou vivo. Pode ser uma armadilha. Talvez você esteja sendo seguido”.

“Nenhum carro ou moto me seguindo, mas mesmo assim, estou acabando com minha gasolina para despistar qualquer possível perseguidor”.

“Não vá para casa. Passe a noite em um hotel. Arranje um mapa e delimite a área. Vou mandar o Flávio até você, para pegar a delimitação. Cancele qualquer vínculo com a Irmandade até segunda ordem”.

“Droga, cara, me ferrei!”

“Talvez. Não sabemos ao certo. Podemos estar exagerando, mas não podemos correr o risco de expor a Irmandade”.

“Eu sei. Anota o endereço do hotel”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:09

Parte 28: Alvo Encontrado

Voar... Todos sonham com esta sensação, algum dia. Um dos grandes sonhos da humanidade, desde tempos antigos, provados com histórias como a do homem que construiu asas de cera, mas voou perto demais do sol e acabou caindo no mar. Não é exatamente a mesma coisa, mas, tirando a vista, a sensação de voar não deve ser muito diferente. Volto a me concentrar na presença do homem que interceptei, enquanto persigo-o ‘voando baixo’, com os tentáculos de trevas me mantendo em rápido movimento, se agarrando em árvores, postes, grades, muros e chão, usando as pernas apenas para absorver o impacto ao atravessar ruas, quando os tentáculos me atiram e se vêem, por um instante, sem apoios para continuar. Mantenho certa distância, pois não preciso vê-lo para segui-lo, graças à presença emanada por ele. Ao atravessar uma rua, quase sou atropelado por um caminhão, mas ignoro e torço para que o motorista não tenha me visto ou ficaria bem confuso ao vislumbrar um pouco da verdade sobre o que existe oculto dos olhos comuns. Lóki se agarra em mim como pode, para não ficar para trás, mas mesmo assim, não para de reclamar e resmungar. A sensação de voar é realmente incrível...

Minha presa finalmente pára. Os tentáculos me elevam até o topo de um prédio comercial para que eu veja onde cheguei. Um hotel. Será que ele não é da cidade? Ou será que está querendo me despistar? Porque ele simplesmente não vai até seu mestre e facilita as coisas pra mim? Droga... Já estou aqui, não vou desistir tão cedo. Me sento e fico observando por algum tempo.

“Porque menino-demônio não deixa Lóki comer pedaço dele? Carne de humano gostosa”.

“Já disse que não. Não vim caçar comida pra você, vim para pesquisar e observar”.

“Menino-demônio burro...” Resmunga e se aquieta, o pequeno canibal.

Quero chegar mais perto. Não posso escurecer a área, senão ele vai sacar que estou perseguindo-o. Espero ter feito a coisa certa. Espero ter dito as coisas certas para a pessoa certa. Depois de meia hora observando de longe e sentindo a presença do homem dentro do hotel, resolvo chegar mais perto. Duvido que tenha ido dormir. Libero as sombras mescladas ao meu corpo, solto o cabelo, tiro o sobretudo, desço do prédio e oculto os tentáculos sobre a camiseta. O mais estranho destas trevas sólidas é que, por mais fortes que sejam, elas não têm massa. São sombras que se livram da bidimensionalidade para se relacionar com a matéria que as originam, porém, ainda são sombras. Cancelo o feitiço de ver no escuro, caminho até o hotel, me sento no sofá de espera e pego uma revista para disfarçar.

“Posso ajuda-lo?” Pergunta uma atendente, provavelmente pensando que sou algum vagabundo desocupado que vai causar problemas.

“Estou só esperando meu tio descer”.

“Ele está hospedado aqui?”

“Sim”.

“Ah, fique à vontade”. A confiança com que falo é tamanha que ela parece acreditar. Retribuo o sorriso, para reforçar a naturalidade. Espero um pouco, para encontrar uma forma de subir sem ser percebido. Um entregador de pizza chega com sua encomenda arredondada, a essa hora da noite. Talvez agora, com essa distração, eu consiga subir, porém, me surpreendo ao ver e sentir minha caça descendo para receber a pizza. Observo. Vejo-o entregando notas de dez. Grosso demais, como se tivesse algo entre as notas. O entregador guarda o dinheiro direto no bolso e não devolve troco. Chamem-me de paranóico, mas esta transação me pareceu muito estranha. Especialmente as expressões nos rostos. Saio do hotel. Sinto a presença de Lóki, escondido em uma árvore próxima e vou até ele.

“Lóki, quero que você fique por aqui. Vigie o cara do hotel e siga-o, caso ele saia. Te encontro aqui depois, para me relatar o que aconteceu”.

“Onde menino-demônio vai?”

“Vou seguir outro cara. Apenas vigie e não se deixe ser visto. Volto mais tarde”. Digo me apressando ao ver o tal entregador dar a partida na moto. Corro para um canto mais escuro e longe do campo de visão das poucas pessoas por ali e libero os tentáculos para seguir o motoqueiro. Não posso perde-lo de vista, pois não sinto nada nele. Parece um cara comum, mas algo me diz que não. Refaço o feitiço para ver na escuridão e persigo-o, reunindo sombras nos cantos das calçadas para me camuflar ao máximo, enquanto vôo baixo, usando os tentáculos.

Ele corre, mas não parece ter me percebido. Perco o sinal de Lóki e do outro homem, conforme me afasto do hotel seguindo o motoqueiro. Na periferia, minha velocidade é reduzida e o motoqueiro abre vantagem o suficiente para me despistar, porém, continuo seguindo pela direção em que ele estava, até que sinto uma fraca presença, identificando um servo em algum lugar próximo dali. Sigo-a até uma grande área murada. Os tentáculos me elevam para que eu veja por sobre o muro. A moto em que estava o motoqueiro e um belo carro, sozinhos, em uma área grande, onde poderiam ser estacionados vários automóveis. Uma casa grande e bonita e dentro dela, a presença. Aparentemente, um tipo de chácara, ideal para um churrasco com os amigos, no final de semana. Encontrei mais um servo e desta vez, ninguém sabe sobre mim. Posso entrar agora e descobrir o que se encontra lá dentro. Me parece que o motoqueiro foi um ‘menino de recados’ de um servo para outro. Eles parecem organizados e espertos.

Decoro o endereço. Não posso entrar agora. Ainda tenho que buscar o Lóki e ir na aula amanhã. Volto na próxima noite. Não estão me esperando, tenho a vantagem da surpresa. Retorno ao hotel e reencontro Lóki sobre a árvore. Ele me diz que o homem ficou lá o tempo todo. A presença me prova de que, ao menos agora, ele ainda está lá. Pego minhas coisas sobre o prédio e tomo o caminho de casa. Subo até minha janela, desfaço os feitiços, anoto o endereço do local onde o motoqueiro me levou, guardo minhas coisas e me deito, lançando-me à escuridão da inconsciência. Nada ao meu redor, a não ser trevas... Um par de olhos brilhantes surge à minha frente... Logo depois, novos pares começam a surgir... Três, cinco, sete pares... De repente, não consigo mais conta-los, devido ao enorme número que surge me rodeando... Eles começam a se aproximar... Seus passos fazem um barulho estridente e repetitivo...

Luto contra o sono, para me levantar, enquanto o despertador apitava. Resisto à vontade de chutar a caixa virada de cabeça pra baixo, onde Lóki estava. Me arrumo para o colégio, deixando pedaços de carne crua para o pequeno diabo, que ignorava totalmente o leite que Luna colocava pra ele e que eu tinha que tirar, para que ela acreditasse que ele estava tomando. Chego atrasado na aula, mas isso não faz muita diferença, visto que, nos sábados, o colégio é quase vazio. Poucas turmas têm aulas neste dia e, destas poucas, apenas cerca de metade dos alunos comparecem. Eu adoraria ficar dormindo em casa, mas o fato de eu estar descobrindo coisas que fazem a escola parecer ainda mais inútil do que já é, não significa que eu possa deixar de lado este importante aspecto de minha vida. E hoje tem boas aulas. Continuo lutando contra o sono.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:10

Parte 29: Encontros

Cochilo algumas vezes, nas aulas e durante os breves intervalos entre elas, tentando recuperar um pouco do sono perdido nas andanças da noite passada. Jogo um pouco de futebol, para despertar, mas resolvo parar depois de derrubar um colega num jogo de corpo onde a lógica dizia que eu é que devia ter ido ao chão. Felizmente, ninguém percebeu. Assisto às últimas aulas e volto pra casa. No caminho, uma incômoda sensação de dejá vu. Oito ‘malas’ no caminho. Um deles com curativos no nariz.

“É esse o comédia que quebrou o nariz do Tiziu?” Um deles toma a dianteira enquanto conversa com um segundo que me parece familiar.

“É...” Ele responde com a voz carregada de desânimo, como se o assunto já estivesse batido.

“E quase matou seus futuros filhos?”

“É...” Então esse segundo deve ser o cara que eu derrubei com um chute no saco. Deve ter doído.

“Aí, cara. Tu mexeu com os caras errados”. O rapaz mais a frente diz, enquanto bloqueiam meu caminho.

“Tem razão, devia ter sido assaltado por gente mais competente”.

“Ainda ta tirando onda, aí”.

“Que tal se vocês me deixassem em paz? Em troca eu deixo vocês inteiros”.

“Tu é que vai sair quebrado, mané!” Ele me ataca com um soco de direita. Eu apenas me esquivo para a esquerda, pego em seu braço e puxo-o aproveitando sua inércia para curva-lo fazendo-o receber em cheio minha joelhada. Depois solto seu braço e derrubo-o no chão, desacordado, com uma cotovelada na cabeça. Tudo rápido demais para qualquer reação.

“Eu espero que venham todos de uma vez, senão vai ser muito sem graça”. Provoco-os após ter o primeiro no chão sem nenhum esforço. Da primeira vez, eram três contra um, eu estava com o braço engessado e confuso. Agora estou inteiro e já uso o anel há uma semana, sendo que já enfrentei seres que eles nem ao menos imaginam que existam. É melhor eu maneirar.

Eles atendem meu pedido, me contornando, para poderem me atacar por todos os lados, porém de nada adianta, pois consigo prever seus movimentos para me defender apropriadamente de qualquer golpe que usem contra mim. Em poucos segundos, estão todos no chão. Me pergunto que chances eu teria contra eles, sem o anel. Provavelmente, poucas ou nenhuma. E se Khestalus pegasse o anel de volta? Não posso ficar me apoiando nele. Tenho que aprender a me virar sem ele. Volto pra casa.

Em casa, Luna assistia TV com Lóki no colo. Não gosto dessa proximidade dos dois. Luna acredita que Lóki seja um bichinho de estimação e não suspeita que dentro daquele monte de pêlos exista uma mente consciente e maligna. Lóki pode acabar se aproveitando da ingenuidade dela e prejudicando-a. Preciso dar um jeito nele. Almoço, me arrumo e saio, rumando para o ponto de ônibus.

“Graça?” Digo após atenderem minha ligação.

“Oi, Athos”.

“E aí? Está de pé?”

“O quê?”

“O lance de eu ir aí pra tua casa hoje”.

“Ah, está sim. Pode vir”.

“Ok, então daqui a pouco estou aí”.

“Ta bom. Beijo”.

“Beijo. Tchau”.

Pego o ônibus, juntamente com várias outras pessoas. Gente comum, indo ou vindo do trabalho, escola ou passeio. Olhares cansados, sorrisos felizes, mal humor... Pessoas comuns, com preocupações comuns, sobrevivendo em um mundo comum, alheios às verdades ocultas. Não precisam se preocupar com monstros vivendo nas sombras. O mundo ‘comum’ já é cruel o bastante. Todos lutam suas lutas diárias, buscando seus momentos de satisfação. Vidas curtas a serem aproveitadas. Para eles, as tais verdades são apenas histórias. São protegidos por sua descrença e ignorância enquanto eu me arrisco em minha crença e busca pelo saber. Quem estaria certo? Quem busca as verdades ocultas ou quem crê nas verdades expostas? Até mesmo a verdade é algo relativo. Salto no ponto mais próximo à casa da Graça e caminho até lá. Toco o interfone e espero que atendam.

“Quem é?” Voz masculina do outro lado.

“A Graça está?”

“Quem é?” Repete a pergunta, ignorando a minha da mesma forma que eu ignorei a dele. Muito provavelmente, ambos já sabemos as respostas pra tais perguntas. Ele já deve ter presumido quem sou eu, assim como eu imagino que Graça esteja em casa.

“Athos”.

“Ah...”

O portão se abre e eu entro, cruzando o jardim e chegando à porta que é aberta por Graça. Nos beijamos antes de entrar juntos na casa. No sofá, assistindo televisão, estavam seu pai e irmão. Eu os cumprimento, tentando ser amigável. Eles respondem ao meu cumprimento, fingindo que também estão tentando ser agradáveis. Todo mundo fingindo estar tudo bem. A mãe dela estava no escritório, mexendo com uma papelada. Depois de cumprimentar a todos, fomos para o quarto dela, conversar e nos curtirmos um pouco.

“Lembra quando eu vim aqui, na quarta? Que eu disse que queria fazer uma surpresa?”

“Lembro, o que tem?”

“Bem... Digamos que a surpresa não era exatamente a visita na quarta. Aquele dia eu só vim pegar isso emprestado”. Digo devolvendo um anel que eu havia pego escondido de seu quarto.

“A surpresa mesmo é isso”. Mostro o par de alianças de prata com nossos nomes entalhados que comprei no centro da cidade, na quinta-feira depois das aulas. A expressão no rosto dela fez valer a pena. Seus belos olhos cor de mel brilhando, acompanhando seu lindo sorriso metálico. Passamos a tarde ali, entre conversas, risos, carícias e física, matéria em que ela estava com alguma dificuldade e que eu fiz de tudo para ajudá-la. Sou um cara de sorte...

Fui embora com o céu já escuro, porém, antes do jantar. Graça e sua mãe insistiram pra eu ficar, mas achei melhor não. Para o primeiro dia na casa dela, já estava bom. Já em minha casa, após realizar os ritos de precaução, contei sobre a Graça para minha mãe e irmã que acharam legal e pediram para que eu a trouxesse um dia desses. O tempo todo eu sentia as duas presenças já conhecidas: Lóki e minha mãe. Sentir minha mãe com a fraca presença de um servo é intrigante. Não posso perguntar nada para ela. Será que Khestalus deixou nela um pouco de seu poder, quando me ‘fizeram’? Talvez faça sentido minha mãe ter se tornado um tipo de ser sobrenatural menor por me dar à luz. Ou talvez não. Considerando, é claro, que Khestalus seja mesmo meu pai. Ainda tenho muito o que descobrir. Após o jantar, esperei as duas terminarem seus programas e irem dormir, para que eu pudesse sair, devidamente trajado, para visitar o endereço que consegui na noite anterior.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 14:10

Parte 30: Outros

O cheiro de cerveja predominava naquele lugar. Música sertaneja saía do aparelho de som, para alegrar o ambiente. Em uma mesa, um casal jogava o jogo mais antigo do mundo apesar de ambos já terem vencido e estarem apenas adiando a concretização que viria na cama de algum motel da cidade. No balcão, o balconista discutia sobre futebol com um amigo, enquanto quatro homens contavam piadas e histórias em torno da mesa de sinuca. Aquele homem bebendo sozinho, imerso em pensamentos, parecia deslocado naquele lugar, mas ele não se importava. Há quase vinte anos, deixara de se importar. Mesmo com a mente distante, permanecia atento ao seu redor, porém, até então, nem a arma que o balconista guardava debaixo do balcão, nem a insistência da roupa íntima da mulher na mesa ao lado em se mostrar lhe chamaram a atenção. Diferente do rumo que tomara a conversa dos caminhoneiros da mesa de sinuca, que fizera com que ele movesse seus olhos para prestar atenção na linguagem corporal do narrador.

“Era grande, cara! E quando eu digo grande, quero dizer grande mesmo. Mais de dois metros! E passou voando bem na minha frente, quase atropelei a coisa. Quando olhei de novo, não tava mais lá, tinha sumido!”

“Era um elefante cor-de-rosa, hahahaha”.

“Eu não estava bêbado. Não tinha tomado nem uma gota de álcool. E era preto. Escuro mesmo. E parecia que a coisa deixava as coisas mais escuras por onde passava. Meu farol quase apagou quando ela passou por mim, mas depois que ela sumiu, ele já tava forte de novo”.

“Devia ser um urubu idiota voando baixo”.

“Não era um urubu. O que eu vi não era bicho comum. Não sei o que era, mas não era normal. Na hora, eu só tinha essa certeza. Não era normal. Aquela coisa não devia existir”.

“Muito fraca essa sua história, Jorge. Tu atropelou um urubu e vem com esse papo pra assustar criancinha. Jarbas, conta a vez que tu atropelou uma vaca”.

“Nem me lembre. Tenho a cicatriz até hoje. Era madrugada e eu estava viajando pelo interior, lá pros lados de Anicuns...”

O homem terminou a cerveja, pagou sua conta e saiu do bar, deixando os homens da mesa de sinuca e seus ‘causos’ para trás. Não se interessava em vacas atropeladas, mas o caso da coisa escura lhe chamara a atenção. Imaginava o que poderia ter se mostrado ao caminhoneiro e porque vacilara desta forma. Pensava se aquele homem tinha idéia da sorte que teve em permanecer vivo e inteiro, após tal encontro. As criaturas da noite não costumavam ser tão pacíficas. Enquanto saía, conferiu mais uma vez junto ao corpo e, como da última vez, há cinco minutos, constatou que a Mão de Deus e seus Anjos continuavam lhe acompanhando, no coldre. Entrou no carro e partiu, rezando para que a sabedoria divina continuasse guiando seus passos e disparos.

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Falar com os antigos servos de Saulo não foi de grande ajuda. Nenhum deles pôde proporcionar nenhuma pista sobre quem invadiu o covil. A única informação útil foi a daquele que se dizia servo pessoal e que conhecia a real natureza de Saulo. Não sei se ele estava dizendo a verdade, mas, de acordo com ele, o assassino de meu irmão manipula sombras, mas não é um Anunnaki. Se ele estiver certo, isso significa que, seja lá quem for, não é um rebelde desafiando o poder do Lorde. Infelizmente, não importa quem seja, para encorajar outros rebeldes. O conhecimento sobre a morte de Saulo e Victor não deve se espalhar antes de termos pego o assassino. Saber o local onde o carro de meu irmão foi encontrado facilitou mais a busca, pois diminuiu a área a ser procurada. Ele não pode ter morrido muito longe do carro. A investigação está sendo satisfatória e com a ajuda disponibilizada pelo Lorde, acredito que dará resultados em breve. O maldito não perde por esperar.

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Ele entrou no elevador satisfeito consigo mesmo, soprando fumaça para cima e jogando o toco de cigarro fora, enquanto sorria se deleitando com seus feitos. Com certeza, sua reputação melhoraria bastante entre os outros, quando soubessem. Demorou, mas estava feito. Uma guerra secreta se iniciaria entre os dois cultos, graças a ele. Uma guerra secreta que ceifaria a vida de vários adoradores estúpidos e diminuiria consideravelmente o poder de seus mestres ocultos. Pelo menos uma das seitas deixaria de causar problemas, mas gostava de pensar no quão seria extraordinário se as duas se extinguissem e tudo graças a ele. Parou em seu andar, mandou o elevador para o térreo, como de costume, e caminhou até sua porta, repassando seu plano, as ações e palavras que culminaram naquilo. Fora perigoso se infiltrar discretamente nas duas organizações, mas nada que um pouco de observação e dissimulação não ajudassem. E para quem sabe o que faz, não é preciso se expor à alta hierarquia, basta manipular os cultistas menos experientes para que fizessem o que queria.

Entrara no apartamento escuro, se sentindo ótimo, acendeu a luz e, por um instante, seu coração parou. De pé, no meio da sala, estava um grande homem vestido com um manto negro com capuz, amarrado em pontos estratégicos do corpo para não atrapalhar os movimentos. Na negritude do manto, haviam símbolos arcanos discretamente desenhados com um vermelho escuro e seu rosto estava oculto por uma máscara que imitava perfeitamente um crânio com pequenos chifres quebrados e grandes presas afiadas. Do corpo do homem, só era visível o forte queixo negro e os estranhos olhos vermelho-sangue. Era um homem alto e musculoso, sendo impossível que não tivesse visto sua silhueta na sala antes de acender a luz. Era como se ele tivesse surgido do nada. Quando o estranho falou, sua voz era mais grave, forte e sinistra que qualquer voz que já havia escutado. “Boa noite, senhor João”.

“Quem, diabos, é você?!” Ele perguntou sacando a arma, que sempre carregava por precaução, e apontando para o intruso.

“Espero que não esteja achando que suas maquinações passariam despercebidas por todos”. O mascarado disse como se lendo a mente de seu anfitrião.

“O que você quer?!” João perguntou de forma nervosa, puxando o cão do revólver, apesar de já ter presumido a resposta. Tentava descobrir como o invasor conseguira entrar em seu apartamento se todas as portas e janelas estavam misticamente lacradas com runas que impediam qualquer um de atravessá-las sem ser convidado por ele mesmo. Aquele homem não devia estar ali.

“Então você achou? Que pena... Você tentou manipular a Irmandade dos Sete Pecados, mas não percebeu que está sendo manipulado por ela. Seu orgulho e sua vaidade o traíram, senhor João. Você se deixou levar pelo maior dos pecados. Duque Asmodeus se deliciará com sua alma, assim que eu a enviar para ele”. A voz grossa e poderosa falava calma e ironicamente, fazendo João tremer de medo, pois já presumira quem era aquele homem em sua sala. O tempo que passou executando seu plano foi mais que suficiente para ouvir sobre o Ceifador, o assassino mais poderoso da seita, dono do segundo mais alto cargo hierárquico do culto, que carregava consigo as maiores bênçãos concedidas pelos Sete Pecados. Se aquele era mesmo o Ceifador, João teria de usar, pela primeira vez, sua rota de fuga. Se metade das coisas que ouvira sobre o Ceifador fosse verdade, São Paulo seria pequena para se esconder, tendo de se mudar de cidade e desaparecer por alguns tempos. Se o homem em sua sala fosse mesmo o Avatar dos Sete Pecados, João teria se metido em péssimos lençóis.

Puxou o gatilho, ouvindo a explosão da carga. Uma, duas, três vezes. Não acreditava que o mataria, mas precisava distraí-lo para fugir. O mascarado reagiu rapidamente aos disparos, colocando os braços na frente do corpo, exibindo, nas mãos, grandes manoplas de metal negro cobertas por runas, se protegendo dos projéteis que ricochetearam pela sala. João saíra em disparada até as escadas, puxando uma pequena pilha de objetos que deixara junto ao batente da porta. De dentro dos recipientes empilhados, caíra um pó de cor avermelhada, fazendo um arco que ligava um lado ao outro do portal. Com um gesto e uma palavra rápida, João ativara o feitiço simples que impediria qualquer pessoa de atravessar aquela porta pela próxima hora. Começara a descer rapidamente as escadas, saltando vários degraus de cada vez, feliz por não ouvir passos correndo atrás de si. O assassino teria de esperar o elevador, o que lhe renderia tempo suficiente para escapar. Repassava a rota de fuga em sua mente quando, ao terminar o segundo lance de escadas, seu coração parou novamente, desta vez, por ser trespassado por um tipo de lança prateada, empunhada pelo Ceifador.

A lança quebrou suas costelas, trespassou seu coração e saiu do outro lado, jogando seu corpo contra a parede, devido ao forte impacto. Na outra ponta do longo cabo da lança, podia ser vista a grande lâmina curvada de uma foice prateada, cheia de símbolos arcanos por toda a bela e intimidante arma. Não entendia como o Ceifador surgira tão repentinamente em sua frente e nem como ele conseguira aquela enorme arma, porém, entender era a menor de suas preocupações. De repente, a foice-lança desapareceu, se dissipando em fumaça e seu corpo ameaçou cair no chão, quando foi erguido pela grande manopla negra do assassino que segurava seu pescoço.

“Mande lembranças ao mestre Asmodeus e conte como seu orgulho foi sua perdição”. Com uma grande adaga rapidamente desembainhada, Ceifador cortara o pescoço do estúpido homem que desafiara o poder dos Pecados, quase levando a Irmandade a uma guerra sem motivos. Se deliciou com seu próprio orgulho, por ter percebido e descoberto as sutilezas do desenvolver do plano a tempo de impedi-lo de se concretizar e se deleitou com a morte daquele adversário. Teria apenas de falar com os líderes da Prosperidade Negra e esclarecer o mal entendido, criado pelas maquinações daquele homem que agonizava aos seus pés, para que a guerra fosse evitada. Limpou a lâmina da adaga e começou a descer as escadas para sair dali e ganhar as ruas da grande metrópole. A noite era longa e São Paulo tinha de tudo para satisfazer seus desejos e pecados.
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