Olá a todos,
Cinema lotado.
E o silêncio logo após as cenas iniciais permaneceu ao longo do filme todo.
O jogo de "adivinhas" com o espectador é um dos grandes baratos deste filme.
Ilha do MedoShutter IslandA adaptação do livro “Shutter Island”, chamado no Brasil inicialmente pela editora responsável de “Paciente 67” de Dennis Lehane sempre foi um desejo de Scorcese, que adora trabalhar a sanidade humana na mente de seus personagens e dos espectadores.
E o diretor logo de cara faz uma homenagem a uma de suas obras primas, Taxi Driver (1976). Assim como na obra que trabalha a mente veloz e quase insana de um motorista de taxi ex-combatente do Vietnã, algo surge em meio a uma neblina pesada e simbólica logo no início do filme.
Mas desta vez não é um taxi em Nova York, mas uma balsa que transporta o agente federal Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e seu parceiro, o agente Chuck Aule (Mark Ruffalo) à Ilha do Medo.
Na ilha encontra-se o aterrador manicômio judicial de Shutter Island onde a escória mais brutal da humanidade mantém-se isolada do resto do mundo. O ano é 1954 e os dois agentes visitam o local em busca da solução de um mistério: o desaparecimento de uma condenada conhecida pela negação do assassinato de seus filhos.
E é em torno desta atmosfera de mistério, crime e insanidade que o filme segue.
O Autor da obra literária afirmou que um de seus objetivos era homenagear os filmes de terror B e nesta questão Scorcese seguiu à risca a intenção.
Desde os primeiros minutos do filme, um experiente espectador, calejado e farejando filmes semelhantes poderá começar a ter idéia do final proposto, ou ao menos da linha pela qual o filme seguirá. Mas como se trata de insanidade, as múltiplas possibilidades deixam a todos na expectativa do que é real, ou não.
Ilha do Medo apresenta diversas referências aos filmes de terror e suspense, alguns dirigidos pelo próprio diretor que lamentou o fato de não poder contar com Robert De Niro com quem já fez 8 filmes, de Caminhos Perigosos a Cassino no elenco.
A Neblina vista logo no começo, que já apresenta ao espectador qual a fotografia proposta, simboliza a confusão e o tormento pela qual pode navegar a mente humana. Aqui quem conhece os personagens de De Niro em Taxi Driver, Touro Indomável, Os Bons Companheiros e Cabo do Medo já entenderá algo implícito na atmosfera da obra. Há algo muito errado com TODOS.
Scorcese é um conhecido avesso a utilização de efeitos especiais em seus filmes, mas desta vez aceitou empregar técnicas de cor e imagem para dar a Ilha a atmosfera gótica e sombria que o livro descreve. E acertou em cheio.
No resto mantém sua capacidade de envolver o espectador com ganchos aprendidos com seu mentor, o cineasta John Cassavetes, considerado o "pai" do cinema independente dos Estados Unidos e diretor de A morte de um bookmaker chinês (1976) e Um grande problema (1986), filmes que inspiraram Scorcese em seu início de carreira. Algumas destas técnicas de condução narrativa podem ser vistas por exemplo na quantidade proposital de vezes em que os atores oferecem cigarros uns aos outros (Uma dica do diretor) ou falam que “a Ala C é o local mais perigoso”, “Não sabemos onde ela está” ou “O cais é o único ponto de entrada e saída da ilha”.
O personagem principal chega a uma Ilha estranha, inóspita, isolada, controlada por pessoas taciturnas e caladas em busca de respostas para o desaparecimento de uma paciente, mas também para questionamentos pessoais que o assombram desde a morte de sua esposa Dolores interpretada com equilíbrio perfeito pela Michelle Williams no que está sendo considerado um de seus melhores papéis.
Logo que chegam a ilha, os dois agentes ficam também presos ao emaranhado esquizofrênico dos habitantes pela chegada de um furacão a região, o que impossibilita que qualquer embarcação saia ou chegue ao manicômio.
E ao começarem a investigar o ocorrido fica claro que não deviam estar ali, que ninguém quer que estejam e eles mesmos sentem-se compelidos a sair. Praticamente a fugir.
Os desdobramentos se sucedem em meio a diversas pistas falsas, apresentadas em gotas propositais por Scorcese em sua conhecida brincadeira mental. Será o hospital algo além do que se vê? Estariam os agentes envolvidos em alguma conspiração sem o saber? Haveria realmente uma paciente? O diretor e os guardas são o que parecem ser? O espectador é convidado a analisar cada quadro com a lupa de um detetive. E muitos exercem o Hercule Poirot e o Sherlock Holmes existente dentro de si.
O filme talvez peque nas exageradas e incômodas cenas em que o personagem de Di Caprio sonha com sua Dolores. Algumas destas inserções são cansativas e chegam a irritar a platéia. Mas com certeza há um propósito.
Neste ponto o equilíbrio e o ponto amenizador é a trilha sonora envolvente e correta de John Cage "Music for Marcel Duchamp”. Os toques de piano flutuam do sereno e comovente ao aterrador e confuso.
Scorcese trabalha planos e técnicas para dar vida as viagens psicotrópicas dos protagonistas. Os “chicotes”, que são os vislumbres rápidos que vão de um personagem a outro sem corte e a arte surrealista quase barroca do Cogumelo Atômico vislumbrado em meio a loucura (ou quase) do herói (ou anti-herói), demonstram esta mão direcional tensa e incômoda.
Di Caprio, em um de seus melhores trabalhos (Para alguns críticos o melhor), possui uma constelação de atores que criam um céu de segurança para sua atuação. A começar pelo companheiro de polícia, Mark Ruffalo que parece ser ao mesmo tempo submisso e experiente ao lidar com um caso e um “chefe” tão enigmáticos. Michelle Williams se apresenta leve em sua beleza e assume o papel com desenvoltura. Suas aparições são perturbadoras tanto para Caprio quanto para o público. Ben Kingsley como o diretor da instituição demonstra o porque de ter ganho o seu Oscar. A cada fala confunde ainda mais o espectador, que no meio do filme quase acredita em suas palavras. Ted Levine é o chefe da carceragem. Claro que o papel já se apresenta pesado e cruel, mas seus olhares e o sorriso sarcástico conduzem a platéia em sua busca pela verdade. Há boas dicas em suas falas e seus gestos.
Max Von Sydow é um psiquiatra de fala mansa e atitudes sinistras. Em sua primeira aparição, já percebemos a que veio. Jack Earle Haley que se espacializou por representar caricaturas sombrias e deformadas, é responsável por um dos momentos mais memoráveis do filme. Seu diálogo com o personagem de Di Caprio faz com que o espectador que ainda não tivesse percebido algo, acordasse. Mesmo os que conheciam o título dedo-duro do livro em sua primeira edição brasileira.
O filme vale o ingresso, mas não saímos do cinema coma sensação de ver algo como uma obra prima, ou um filme inesquecível. Ele passará em meio a tantos outros do gênero. Provavelmente o que deixará sua marca é a definitiva entrada de Leonardo Di Caprio no quadro de atores maduros.
Abraços,
Rodrigo “Allefcapt” Tolentino
allefcapt@globo.comallefcapt@spellrpg.com.br