Parte 31: A Irmandade
Conseguia sentir duas presenças dentro da casa, naquela noite. Presenças fracas, indicando servos. Um no andar de cima, o outro no andar de baixo. Além deles, não sabia o que mais podia encontrar. Mantive a iluminação normal do local, para não despertar suspeitas, mesmo porque, não havia muitas luzes e conseguiria me esconder bem naquele ambiente. Saltei o muro sem dificuldades, usando os tentáculos que saíam dos símbolos desenhados em minhas costas. Mandei Lóki vasculhar entrando por alguma janela do outro lado da casa e me aproximei furtivamente. Quando já estava próximo à porta de entrada, fui acometido por uma forte sensação de perigo e rolei no chão escapando por pouco de uma rajada de tiros que arrancaram pedaços da parede. O pior foi perceber que os disparos foram dados por um homem que estava no alpendre, próximo à porta e que, de alguma forma que não conseguia entender, eu não havia notado. Ou melhor, eu o havia ignorado, mesmo ele estando ali o tempo todo, segurando um fuzil!
Utilizando os tentáculos para cobrir a distância que nos separava, tomei o fuzil de suas mãos disparando algumas balas perdidas, enquanto nocalteava-o com alguns golpes e o jogava contra a parede, desacordando-o. O fuzil parecia ter um silenciador, pois as explosões dos disparos eram abafadas, porém isto não seria o bastante para evitar que me denunciasse para possíveis outras pessoas na casa. Como fui cometer um erro tão estúpido? Porque não o ataquei antes dele me denunciar? Porque, diabos, ignorei sua presença? Então percebi um grande tapete sobre o qual estava o atirador e uma cadeira de fios. Um círculo cheio de símbolos se encontrava desenhado no tapete. Não era apenas uma peça decorativa e estava embaixo da cadeira por algum motivo. Provavelmente, o círculo fora usado para algum feitiço responsável por eu ter ignorado o homem. Não podia desistir agora. Mesmo sendo arriscado, tinha que entrar na casa. Podia sentir as presenças se movendo no interior da construção, provavelmente se preparando contra mim.
Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Procurei por chaves nos bolsos do homem caído, mas nenhuma fora útil. Como minha presença já fora alertada, decidi derrubar a porta. Me afastei um pouco e a chutei. Nada. Nos filmes parecia mais fácil. Joguei meu corpo contra ela. Apenas barulho. A porta continuava inteira e firme no batente. Chutei mais uma vez com toda minha força, mas fora em vão. Não conseguia acreditar que uma porta de madeira pudesse ser tão resistente. Me preparei para mais um chute, quando sou tomado por uma sensação de perigo que me faz jogar-me no chão. Buracos de bala surgem na porta. Alguém estava atirando do lado de dentro. Uma das presenças. Sem barulho de explosões. Também deve estar usando silenciador. Mesmo diante de uma invasão, evitam chamar a atenção da vizinhança e, consequentemente, da polícia. Devem ter muita coisa para esconder.
Pego o fuzil do homem caído e uso-o contra a porta, tentando acertar o atirador. Assim que percebo que ele se afastou para se proteger, chuto a porta novamente. Mais alguns tiros para mantê-lo longe e mais chutes para derrubar a maldita porta. Os buracos de tiros e meus golpes estavam quebrando a porta que dava acesso a um hall de entrada. Depois de mais alguns chutes, a porta se quebrara ao meio, apesar de suas dobradiças ainda estarem firmes. Largo o fuzil já sem munição e entro. O pequeno hall tinha dois portais de acesso, sendo que a presença que sentia estava à direita, onde encontrei uma escada que levava ao segundo andar, uma porta que deveria dar para um pequeno armário debaixo da escada e dois portais, sendo que a presença estava novamente à direita.
Toda a casa se mantinha escura, sem nenhuma luz, o que eu julgava ser uma vantagem para mim. Atravessei o portal da direita, entrando em uma sala, mas mal entrei, já saltei para trás, escapando por pouco de um tiro na cabeça, disparado pela pistola com silenciador do homem cuja presença eu sentia e que estava me esperando rente à parede da sala, próximo à porta. Percebendo meu recuo, o homem, que usava óculos escuros, mas parecia enxergar tão bem quanto eu, já desferira um golpe usando uma adaga empunhada com a outra mão na altura de meu pescoço. Teria sido degolado se os tentáculos não me puxassem para trás bem a tempo. Mal coloquei os pés no chão e ele já apontara a pistola novamente para mim. Evitei o disparo arqueando rapidamente meu corpo para trás me apoiando nos tentáculos e erguendo a perna num chute contra a arma de fogo, jogando-a para longe.
Os tentáculos impulsionam meu corpo corrigindo minha postura a tempo de segurar seu braço e interceptar um novo golpe com a adaga. Reagindo rapidamente, ele desfere um soco com a mão que agora se encontrava livre, sem a pistola, mas que também consigo bloquear, segurando seu punho antes que me acertasse. Quando pensei que dominava a situação, meu adversário salta chutando meu peito com os dois pés, se soltando e ganhando distância. Dou um passo para trás devido ao impacto e já salto de volta ao hall, para evitar os disparos de uma segunda pistola que ele levava na cintura, a qual sacara logo que caíra no chão. Esperei por um momento. Os tiros cessaram, mas ele não saiu do lugar. Parecia esperar que eu saísse de meu esconderijo.
Silêncio. Saio do hall lançando os tentáculos contra meu adversário quando caio em sua armadilha. Ele não me esperava com uma pistola, mas sim, com uma esfera de chamas brilhantes disparada contra mim que destrói dois de meus tentáculos que se interpõe em seu caminho e me acerta o peito me jogando para trás, atravessando um portal e caindo no chão de uma cozinha. Sinto a ferida arder com a queimadura provocada pelo estranho fogo, mas não gasto tempo com a dor, rolando para o lado, apagando o resto do fogo e saindo da linha de tiro de meu algoz que já empunhava a pistola novamente e caminhava em minha direção. Num rápido vislumbre, vejo a outra pistola caída no chão e com um dos tentáculos restantes arremesso-a para minhas mãos no exato momento em que o estranho de óculos escuros adentrava o cômodo. Por um milésimo de segundo, nos fitamos, um mirando o outro a uma distância de pouco mais de um metro. Tiros à queima-roupa, impossível para qualquer um errar. No milésimo seguinte ele dispara, eu hesito.
Mais um de meus tentáculos é destruído ao entrar na frente do disparo e receber o tiro por mim. Puxo o gatilho. O disparo acerta sua mão que segurava a pistola. Uma expressão de dor se forma em seu rosto ao ter a mão inutilizada, mas não cessa seus movimentos. Numa ação rápida ele arremessa a adaga que segurava com a outra mão, me fazendo perder a mira e me abaixar para evitar a lâmina. Me levanto a tempo de ver seu pé se aproximando rápido de meu rosto num potente chute que me joga para trás. Ele se joga sobre mim, apoiando as pernas em meus braços para me prender e levando a mão boa ao meu pescoço para me estrangular. A pressão em minha garganta crescia juntamente com a falta de ar. Como reflexo, meu último tentáculo se enrola no pescoço de meu algoz, forçando-o a me soltar. Ele se levanta sendo puxado pelo tentáculo e permite que eu me levante também, finalmente dominando a situação. Ele logo perde a consciência devido a falta de ar e eu o solto no chão.
Abro a torneira da pia e jogo água fria em meu peito que ardia com uma terrível queimadura que fedia a minha própria carne queimada. Eu nunca havia sentido tanta dor. Evitava olhar o quão feio estava meu peito para não pensar na cicatriz que ficaria ou como eu a explicaria. Enquanto isso, sinto o gosto de sangue se acumulando com saliva na boca, afasto o lenço do rosto e cuspo. Preciso terminar o que comecei. Procuro algo na cozinha para amarrar o homem inconsciente no chão. Arranco a adaga presa na parede e deixo-a na pia. Pego a pistola que soltei no chão devido ao chute no rosto e me dirijo para as escadas, torcendo para que a presença no andar de cima fosse mais fácil de lidar. Mal piso no primeiro degrau, Lóki chega, entrando pela porta que quebrei.
“Uh, menino-demônio forte. Casa trancada com magia. Difícil entrar”.
“Difícil, não impossível”. Respondo após Lóki confirmar o que eu imaginara. A porta estava lacrada com magia. Portas de madeira comuns, como aquela, não são tão resistentes.
“Porque menino-demônio lutar? Porque menino-demônio não fica amigo? Se amigo, troca favor pessoas e ganha o que quer”.
“É o que você faz, não é, Lóki? Me espiona para Khestalus em troca de algo. O quê, Lóki? Carne crua? Não consigo pensar em algo mais que você possa querer”. Nesse momento, vejo que o monstrinho que voava próximo a mim estava todo sujo de sangue e sorri maliciosamente como se já prevesse minha pergunta. “De onde veio esse sangue, Lóki?”
“Carne de humano gostosa. Homem caído na porta muito feio agora”. Seus olhos vermelhos e brilhantes jorravam crueldade enquanto sorria para mim. Evito imaginar o que ele quis dizer com ‘muito feio agora’ para manter meu jantar no estômago. Continuo subindo as escadas e chego a um corredor com uma porta na extremidade esquerda, outra na extremidade direita e uma terceira próxima à porta da direita. Sinto a presença e me dirijo à direita, até o final do corredor.
“Feiticeiro tranca casa. Feiticeiro poderoso. Menino-demônio burro”. Diz Lóki, sob o corrimão da escada, sem se aproximar. Estaria me avisando para tomar cuidado com a porta? Me afasto da porta e faço o último dos tentáculos em minhas costas girar a maçaneta. Ele mal a toca e o chão desaparece sob meus pés quando sou atirado na direção oposta por uma explosão que lança pedaços de madeira para todos os lados. Meu corpo bate contra a porta do outro lado do corredor e caio ao chão sentindo como se tivesse sido espancado por toda uma torcida organizada. Um zunido em meu ouvido me impede de ouvir qualquer coisa. Me levanto lentamente, me apoiando. Cada célula do meu corpo dói. Lóki não está mais no corrimão. Provavelmente, o covarde fugira. Penso se as coisas poderiam ficar piores e de repente elas ficam. Um homem aparece, atrás do batente da porta destruída, apontando um fuzil em minha direção.